Hidrosfera: de onde vem a água? Porque a água é tão importante para a vida na Terra?

Por Rosana Souza-Lima e Wagner Souza-Lima

A hidrosfera compreende toda a água sobre a superfície terrestre, bem como aquela imediatamente abaixo, que compõe o lençol freático e as águas subterrâneas, e a água existente na atmosfera sob a forma de vapor d’água, pequenas gotículas ou minúsculos cristais de gelo. Assim, fazem parte da hidrosfera os oceanos, mares, rios, riachos, lagos, lagoas, neve, gelo e tudo o mais que apresenta a molécula H2O em sua forma livre, independente do estado físico.

Quase 70% da superfície do planeta Terra é ocupada pela água, sendo os oceanos o maior componente, com quase 97% do total (Figura 1). Este é um dado importante – a maior parte da água existente na hidrosfera é salgada, ou seja, dispomos, de forma natural, de menos de 3% de água doce. Destes 3%, 68,9% compõem as coberturas de gelo das calotas polares e das geleiras das altas altitudes e latitudes, 29,9% estão representadas pelas águas subterrâneas, e 0,9% representa a umidade em solos, pântanos e permafrost (solo que permanece continuamente congelado). Resta-nos, então, apenas 0,3% da água doce na Terra de forma facilmente acessível, seja como rios, seja como lagos. Assim, quando usamos (e desperdiçamos) a água no nosso dia-a-dia, não nos damos conta de que estamos usando algo tão limitado, mas tão essencial para a nossa existência no planeta.

Figura 1: Distribuição global dos recursos hídricos. Fonte: World water resources – UNESCO (Shiklomanov, 1998).

O uso racional da água é um tema tão crucial que a UNESCO possui um comitê criado especialmente para tratar do assunto – o “Programa hidrológico intergovernamental” (Intergovernmental Hydrological Programme – IHP), criado em 1975.

A água, em nosso planeta, está em constante movimento. Não apenas pelo movimento dos rios ou dos mares, mas pelos vários processos físico-químicos de evaporação, condensação, sublimação e precipitação, além dos processos de escoamento e infiltração. O conjunto desses fenômenos compõe o que denominamos de “ciclo da água”. Supõe-se que a hidrosfera componha um “sistema fechado”, ou seja, não há transferência de matéria para dentro ou fora do sistema. Isso implicaria em que a água da qual dispomos é a mesma que esteve à disposição do planeta desde a sua criação. Poluímos a água, destruímos as nascentes dos cursos d’água pelo desmatamento, desperdiçamos a água, fazemos um mal-uso desse recurso que parece grandioso em volume, mas que é muito, muito limitado.

Como pudemos ver no texto “A origem da vida”, as hipóteses mais prováveis sugerem que a vida teria surgido em meios aquosos. A água é fundamental para a existência dos seres vivos. Sem ela, morremos. As primeiras formas unicelulares ocorreram em meios aquosos. A vida multicelular também. Foi apenas após alguns organismos adquirirem a capacidade de serem compostos por várias células, que, com a evolução e adequação de tipos e conjuntos de células para desempenharem diferentes tarefas necessárias ao seu metabolismo, estes organismos puderam se “arriscar” a sobreviver fora da água. Primeiro habitaram as regiões adjacente aos cursos d’água e seus reservatórios. Depois, à medida em que suas estruturas se aprimoravam, puderam afastar-se paulatinamente cada vez mais para o interior das massas continentais, conquistando os mais diversos habitats.

Mas, afinal, porque ela seria tão importante para a vida? Para isso precisamos entender um pouco da química da água. Além de ocorrer em grande quantidade, nenhum processo metabólico ocorre sem a participação da água em alguma de suas etapas. E a água é uma molécula com propriedades muito especiais! Pequena, é formada por duas ligações covalentes entre o Oxigênio e o Hidrogênio, tendo a fórmula estrutural H – O – H. A ligação covalente ocorre pelo compartilhamento de pares de elétrons entre átomos. Como o oxigênio é mais eletronegativo que o hidrogênio, o núcleo do oxigênio atrai os elétrons mais fortemente que o núcleo do hidrogênio: isso faz com que o oxigênio seja mais negativo por ter os elétrons mais próximos, enquanto o hidrogênio é mais positivo por ter os elétrons mais afastados. Essa diferença torna a molécula de água uma molécula polar: uma molécula é polar quando os átomos que a constituem apresentam eletronegatividades diferentes. Dessa forma, o polo positivo de uma molécula atrai o polo negativo de outra molécula, formando pontes de hidrogênio por um processo chamado de atração eletrostática. Essas pontes são pouco estáveis e se formam e se quebram muito rapidamente, fazendo que as moléculas de água realizem muitas interações entre elas. Essas interações são responsáveis pelos estados físicos da água e são causadoras, por exemplo, dos fenômenos de capilaridade que fazem a água subir, contra a gravidade, pelo tronco de uma planta. Quando a água está no estado líquido faz aproximadamente três ligações de hidrogênio; em estado sólido pode fazer pontes de hidrogênio com até quatro outras moléculas. Pontes de hidrogênio também ocorrem nas ligações entre as bases nitrogenadas das duas fitas complementares da molécula do DNA.

A parte carregada da molécula de um soluto polar atrai eletricamente um dos polos da molécula de água e dessa forma fica envolto pela água, misturando-se homogeneamente a ela. Já um soluto apolar não apresenta regiões que possam interagir com a molécula de água, e vai se formar uma solução heterogênea, como quando algum óleo é misturado à água (figura 2). Isso ocorre pois como a água não faz ligações de hidrogênio com moléculas apolares, as moléculas de água acabam se dispondo ao redor da substância apolar para que possam fazer o máximo de pontes de hidrogênio possíveis, mantendo a substância apolar no centro. Para manter a energia do sistema estável as moléculas de água acabam levando as substâncias apolares a se agruparem. Diminuindo a superfície de contato entre substância apolar e água, diminuem as pontes de hidrogênio, diminuindo o gasto energético do sistema.

Figura 2: O óleo, apolar, não consegue fazer ligações com as moléculas de água, e essas moléculas de água acabam fazendo o máximo de pontes de hidrogênio ao redor do óleo. Foto: Rosana Souza-Lima, 2021.

A polaridade é importante para manter a estrutura de todas as células, entre outras funções, pois as membranas celulares são formadas por fosfolipídeos que apresentam uma porção polar voltada para a água e uma apolar que fica longe da água. A estrutura de uma proteína também pode ser influenciada por sua polaridade, mantendo os aminoácidos polares ligados à água e os apolares “guardados” na parte de dentro da molécula proteica.

Outro efeito dessa polaridade é que a molécula da água atrai íons mais fortemente do que um íon consegue atrair outro, porque a molécula de água tem uma alta constante dielétrica. A constante dielétrica é a capacidade do solvente, nesse caso a água, de mascarar a intensidade do campo elétrico de qualquer partícula carregada que esteja imersa nela. Como a constante dielétrica da água é grande, os compostos iônicos ficam dissociados em uma solução aquosa porque um íon não consegue atrair outro com tanta força como a água atrai ambos. Isso faz com que a água seja um bom solvente e é fundamental para o metabolismo dos seres vivos, que na maior parte das suas células e órgãos têm íons em solução aquosa. Tendo facilidade para dissolver substâncias polares e iônicas, como sais e açúcares, a água facilita a interação química entre essas substâncias. A partícula iônica fica tão completamente cercada por água que essa camada externa de água, chamada camada de hidratação, passa a fazer parte do íon, aumentando seu tamanho. Um dos compostos mais importantes para os seres vivos é o NaCl, cloreto de sódio, que ficam dissociados e imersos na camada de hidratação quando estão em solução aquosa. Associada à polaridade, a condutividade da água também está relacionada a sua salinidade: quanto maior a quantidade de íons dissolvidos, maior será a condutividade elétrica na água. Isso é importante para os seres vivos porque todos nós funcionamos na base de troca de íons, o que, em alguns casos, pode ser afetado pela condutividade do meio.

Em qualquer massa grande de água, como em um riacho ou no oceano, podemos dizer que há moléculas mais internas e as mais externas. As moléculas da parte interna formam pontes de hidrogênio entre si e a força total resultante sobre cada molécula é nula. Já as moléculas da superfície da água estão em contato, por um lado, com outras moléculas de água, e pelo outro com moléculas dos gases que ocorrem no ar. Assim, haverá uma fraca atração das moléculas de água pelas moléculas dos gases, resultando na formação de uma fina membrana sobre a água, que dificulta a penetração dos gases e de outras pequenas partículas, formando uma área de tensão superficial. Alguns organismos leves conseguem, assim, ficar sobre a água, apoiados nessa barreira (figura 3).

Figura 3: A tensão superficial permite que pequenos animais caminhem sobre a água. Nessas fotos, insetos em remanso no rio Guapiaçu, Cachoeiras de Macacu, RJ. Fotos: Rosana Souza-Lima, 2019.

A tensão superficial da água diminui à medida que a temperatura aumenta, e também depende da quantidade de substâncias orgânicas dissolvidas: corpos d’água eutrofizados (com intensa proliferação de algas) ou com muitas macrófitas aquáticas, podem ter menor tensão superficial. A poluição por esgotos domésticos, ricos em saponáceos e detergentes também podem afetar essa tensão. Veja nas embalagens desses produtos o aviso: “Contém substâncias tensoativas”.

No estado líquido a água possui maior densidade do que no estado sólido, e dessa forma o gelo flutua. Isso é muito importante para a vida dos organismos aquáticos das regiões mais frias do planeta. Flutuando sobre a água, o gelo funciona como um isolante térmico que mantém a água abaixo dele em estado líquido, permitindo a vida de muitos seres, mesmo em regiões sujeitas a congelamento superficial da água. A temperatura está relacionada à agitação de qualquer molécula: o calor aumenta e o frio diminui a agitação das moléculas. Com o clima frio, aumentam o número de pontes de hidrogênio, diminuindo a distância média entre as moléculas de água, que assim fica mais densa. Devido ao arranjo entre os átomos de oxigênio e hidrogênio a compactação da água é máxima a 4°C (maior densidade) e mínima à temperatura igual ou menor que 0°C (menor densidade). Dessa forma, a água com temperatura menor ou maior que 4°C é mais leve do que a esta temperatura. A densidade também é influenciada pela salinidade da água: quanto mais salgada, maior a densidade. Podemos testar isso facilmente percebendo que é mais fácil boiar no mar do que na piscina.

Outra característica da água é que seu calor específico é alto: dessa forma, a água pode absorver grandes quantidades de calor sem sofrer grandes alterações de sua temperatura. Quando uma panela com água é colocada no fogão, por exemplo, primeiro o bocal de chama do fogão se esquenta, depois a panela, e por fim, a água é aquecida. Essa propriedade da água garante boa estabilidade térmica dos ecossistemas aquáticos. A temperatura dos corpos de água, como rios e mares, varia pouco no espaço de um dia, ou até mesmo entre as estações, enquanto o ar pode apresentar grandes variações de temperatura diárias. Cada ser vivo funciona melhor a uma dada faixa de temperatura, e essa estabilidade é uma proteção importante para o metabolismo dos organismos aquáticos que, em muitos casos, são ectotermos, precisando de uma fonte externa de calor para manterem sua própria temperatura, e são também heterotermos: têm sua temperatura corporal dependente da temperatura do ambiente em que vivem. Por demorar a se aquecer, a água também tem um alto calor de vaporização: assim, os rios e mares absorvem muito calor da energia solar que chega à superfície da Terra para evaporar e formar as nuvens, e isso ajuda a regular a temperatura do planeta. Por isso é tão gostoso tomar um banho de mar ou de piscina em um dia quente: a água “rouba” calor do nosso corpo, nos mantendo mais frescos.

Você já deve ter percebido que é muito mais fácil andar na terra do que dentro da água. A viscosidade da água varia em função da temperatura e da salinidade, e é o que determina a resistência oferecida pela água ao movimento dos seres vivos e de partículas dissolvidas. A viscosidade aumenta com a diminuição da temperatura e diminui quando a temperatura aumenta: isso é importante para determinar o quanto de energia um organismo gasta para se manter na água. Mais um fator que influencia nessa localização dentro do ambiente é a pressão: quanto mais profundo o ambiente aquático, maior é a pressão a que está submetido. Subir à superfície depois de ter mergulhado a grandes profundidades precisa ser feito muito lentamente, para que os órgãos corporais cheios de gases, como pulmões de baleias, golfinhos e leões marinhos ou a bexiga natatória de peixes, por exemplo, que foram muito comprimidas à medida que afundaram, possam se expandir aos poucos, com a diminuição da pressão. Se a subida for muito rápida a rápida descompressão dos órgãos internos pode danificá-los e provocar a morte desses animais.

Será que você já tinha se dado conta de quantas características especiais essa molécula apresenta? Não é a toa que é uma das substâncias mais importantes para nossa vida nesse planeta. Vamos cuidar das nossas fontes de água!

Os vegetais

Fig. 1: Relações de parentesco entre os membros de Archaeplastida. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2021; baseado em dados da literatura científica.

Os Vegetais são mais um dos grandes grupos dentro dos domínios dos Eucariontes. E como tem ocorrido com todos os seres vivos do Planeta, suas relações filogenéticas e as diagnoses dos vários grupos que inclui estão, nesse momento, sendo amplamente discutidos. Atualmente, o melhor termo para chamarmos este grande agrupamento é Archaeplastida! O que significaria esse nome? Archaea significa primitiva, plasto se refere a cloroplasto: a novidade evolutiva (=apomorfia) que define esse grupo é a presença de cloroplastos simples de membrana dupla originários de endossimbiose primária.

Figura 2: Endossimbiose primária originando cloroplastos simples de paredes duplas, baseado em imagens da literatura científica.

No texto sobre “Os animais” falamos sobre a endossimbiose que resultou no surgimento de uma célula eucariótica com mitocôndrias. A proposta é de que a endossimbiose de uma célula eucarionte, já com mitocôndrias, desenvolveu os cloroplastos ao englobar uma cianobactéria. Em algumas linhagens de outros grupos é postulada a ocorrência de eventos endossimbióticos secundários e terciários causados pela integração de uma célula eucariótica por outra célula eucariota ou parte dessas células que resultaram em cloroplastos de estrutura diferente da dos cloroplastos simples. Assim, todos os eucariontes que fazem fotossíntese têm clorofila a herdada desse ancestral do cloroplasto simples; a partir daí muitas linhagens se originaram, e suas histórias evolutivas foram se tornando muito distintas umas das outras. Mas vamos conversar agora sobre os Archaeplastida, que são reunidos pelo fato de terem cloroplastos simples de membrana dupla.

Figura 3: Cloroplasto simples de parede dupla. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2021; baseado em imagens da literatura científica.

Há registros de que a vida na Terra começou antes do Proterozoico, uma gigantesca era que durou 2 bilhões de anos – de 2,5 bilhões a 541 milhões de anos atrás. Os fósseis dessas rochas muito antigas apresentam vestígios de procariontes anaeróbios e também de formações rochosas especiais feitas por cianobactérias, os estromatólitos. Nessa época também há registros de eucariontes: as primeiras algas bentônicas têm cerca de 2 bilhões de anos, enquanto os primeiros fósseis confirmados de fitoplâncton têm aproximadamente 1,5 bilhão de anos. Ainda temos estromatólitos vivos atualmente, que se formam em alguns ambientes costeiros com altas taxas de evaporação, provocando aumento local da salinidade.

Figura 4: Estromatólito (gênero Jurusania Krylov, 1963) formado por cianobactérias; Irecê, BA. Foto: Rosana Souza-Lima, 2017.

Estima-se que os eucariontes surgiram a cerca de 2 bilhões de anos como organismos heterótrofos. Há cerca de 650 milhões de anos, ainda no Proterozóico, há registro de seres autótrofos multicelulares e os primeiros organismos terrestres surgiram há 450 milhões de anos. À medida que autótrofos multicelulares cresceram em tamanho deve ter ocorrido a pressão que levou ao desenvolvimento de tecidos condutores que levavam a energia produzida pelas células iluminadas para as células não iluminadas no centro desses corpos, que assim puderam crescer mais. O grupo Archaeplastida inclui algas, que tradicionalmente eram incluídas no Reino Protista, e plantas terrestres. As plantas compartilham com as algas verdes a presença de clorofila a como o principal pigmento fotossintetizante, além de pigmentos acessórios, como clorofila b e carotenóides.

Figura 5: O tempo geológico e o desenvolvimento de linhagens de Archaeplastida. Fonte: Wagner Souza-Lima, 2021.

As embriófitas, grupo que reúne todas as plantas terrestres (Figura 6) são definidas por apresentarem embrião multicelular, cutícula, esporófito multicelular, esporângios e gametângios multicelulares e alternância de geração do tipo heteromórfica. O que é “alternância de geração do tipo heteromórfica”? Significa que cada indivíduo desse grupo possui duas fases de vida bem diferentes entre si, alternando uma fase de reprodução sexuada e uma de reprodução assexuada. Vamos lembrar que cada organismo formado por reprodução sexuada, seja ele planta, animal, bactéria ou fungo, sempre recebe metade de seus cromossomos da mãe e metade dos seus cromossomos do pai. Esses cromossomos estão nos gametas, que são haplóides (n), carregando metade dos cromossomos do indivíduo que os originou. Assim, quando um gameta se junta a outro forma um organismo diplóide (gameta n + gameta n = zigoto 2n). No caso das embriófitas, a fase de gametófito (sexuada), como já é haplóide (n), produz gametas por mitose; afinal, gametas sempre são haplóides, pois após a fecundação dos gametas forma-se um zigoto diplóide (2n). Esse zigoto crescerá através de muitas mitoses até originar a fase de esporófito (assexuada). Este produz esporos por meiose, ou seja: o esporófito é 2n e, por meiose, produz esporos n. Ao germinar os esporos dão origem a novos gametófitos n.

Figura 6: Relações de parentesco entre os membros de Embriófitas. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2021; baseado em dados da literatura científica.

As “Briófitas” são as plantas terrestres não vasculares, que surgiram no Siluriano, há 420 Ma. Como não têm vasos condutores só podem viver em ambientes úmidos e são plantas de porte pequeno. O gametófito haplóide é a fase dominante, e o esporófito tem vida muito curta. Atualmente o grupo anteriormente denominado “Briófitas” foi dividido em Hepáticas e Antóceros, grupos mais basais, e Briófita propriamente dito ficou mais restrito, incluindo apenas os musgos. Esse grupo restrito, Bryophita, é grupo irmão das Traqueófitas, que são as plantas com vasos condutores de seiva. Os musgos têm o corpo diferenciado em rizoide, cauloide e filoides e têm até condição de viver em ambientes um pouco mais secos, enquanto que as espécies incluídas nos grupos mais basais dependem de maior umidade.

Figura 7: Ambiente úmidos e sombreados, como esse à beira de um rio, são ideais para o crescimento das briófitas, que formam extensos tapetes (Gramado, RS). Foto: Rosana Souza-Lima, 2017.

As “Pteridófitas”, surgidas no Devoniano, foram divididas em dois grupos. As Lycophyta são o grupo mais antigo de traqueófitas e suas folhas têm apenas uma nervura central. As Monilophyta incluem espécies mais simples, como as do gênero Equisetum e as mais de 10 mil espécies de samambaias. Essas plantas têm folhas com um padrão de nervação mais complexo. As novas folhas crescem enroladas na forma de báculo (Figura 8); os esporos são produzidos nos soros, uma bolsa que se rompe quando os esporos estão maduros. Esse grupo já faz parte das Traqueófitas, significando que têm xilema e floema; o corpo é diferenciado em raiz, caule e folhas, e as folhas onde se formam os esporângios são chamadas de esporófilos. O esporófito diplóide é a fase dominante em “Pteridófitas”, “Gymnospermas” e “Angiospermas”.

Figura 8: À esquerda, exemplo de “Pteridófitas” na fase de esporófitos (Monilophyta); à direita o(s) báculo(s), folha(s) em crescimento (Rio de Janeiro, RJ). Foto: Rosana Souza-Lima, 2018.

“Gymnospermas” e Angiospermas fazem parte de um grupo chamado Espermatófitas, porque apresentam sementes. Entretanto, as plantas terrestres vasculares com sementes nuas, como eram tradicionalmente definidas as “Gymnospermas”, são agora divididas em 4 grupos que não são monofiléticos: ainda não estão bem esclarecidas as relações de parentesco entre Cycadophyta (cicas), Coniferophyta (coníferas) e Ginkgophyta (ginkgo); as Gnetophyta (gnetos) são o grupo-irmão das Angiospermas. As “Gymnospermas” possuem as sementes nuas pois não formam frutos: ficam protegidos em flores especiais, os estróbilos (ou cones), e desenvolvem esporos de dois tamanhos: pequenos e grandes.

Figura 9: A) Dois “pinheiros do Paraná”, Araucaria angustifolia, Coniferophyta típica das regiões altas do sudeste e sul do Brasil, emolduram a cachoeira do Caracol (Canela, RS); B a E: estróbilos de Coniferophyta (B: Vancouver,BC, Canadá; C – E: Canela, RS). Fotos: Rosana Souza-Lima, 2017.

As Cycadophyta são comuns em jardins, e produzem estróbilos grandes e vistosos. As Ginkgophyta apresentam apenas uma espécie atual, a Ginkgo biloba, que é considerada um fóssil vivo por apresentarem praticamente o mesmo aspecto há 150 milhões de anos. O grupo das Coniferophyta inclui as formas mais conhecidas do público em geral: araucária, pinheiros, ciprestes e sequoias (Figura 30). São geralmente árvores lenhosas com muitos ramos, de folhas simples e pontiagudas. Geralmente essas árvores são monóicas ou hermafroditas, ou seja: na mesma árvore estão os estróbilos masculinos, menores, e os estróbilos femininos, maiores. Por fim, as Gnetophyta são pouco conhecidas na região Neotropical, pois só ocorrem a oeste dos Andes; possuem vasos condutores muito similares ao das Angiospermas. Triássico com cicadáceas (Bennetialles, por ex.)

Figura 10: A) Vista do centro de crescimento de uma Cycadophyta; B) Estróbilos de Cycadophyta. Fotos: Rosana Souza-Lima, 2021.

As principais novidades evolutivas relacionadas às Angiospermas, classificadas no filo Anthophyta, estão relacionadas a suas flores produtoras de gametas e à estrutura de seus frutos protetores das sementes. São um grupo muito diverso atualmente, abrangendo aproximadamente 90% de todas as espécies de plantas atuais. As Angiospermas sofreram fechamento da folhar carpelar (esporofilo) que é aberta nas “Gymnospermas”, e assim há formação de um receptáculo que protege as sementes, o ovário.

Figura 11: As flores das Angiospermas têm belas cores, deliciosos (ou não!) aromas, pólen e néctar: todas essas estruturas visam atrair animais polinizadores. Fotos: Rosana Souza-Lima, 2021.

As flores são estruturas especializadas que protegem as estruturas reprodutivas e chamam a atenção de agentes polinizadores; assim, apresentam muitas características resultantes de adaptações a polinizadores específicos.

Figura 12: As “Gymnospermas” (esquerda; Vancouver, BC, Canadá) e Angiospermas (direita; Rio de Janeiro, RJ) incluem espécies de porte muito grande, resultante das possibilidades de crescimento permitidas pelas presença de vasos condutores sustentados por lignina. Fotos: Rosana Souza-Lima, 2017.

Conhecendo um pouco mais dos dois mais ‘famosos’ grupos de seres vivos da Terra percebemos que incrível é a diversidade de formas e papéis ecológicos, muitos deles desenvolvidos em processos milenares de coevolução. As características dessas intrincadas relações muitas vezes baseiam-se em um delicado equilíbrio entre as populações de cada uma das espécies envolvidas. O desequilíbrio causado pelas próprias mudanças naturais do planeta, ou aceleradas pelo crescimento das populações humanas podem desestabilizar essa sensível integração e causar danos a todos que vivem na Terra. Vamos falar mais disso!              

Figura 13: Momento de ocorrência dos principais eventos da história da vida na Terra, considerando um período de 24 horas. Fonte: Rosana Souza Lima, 2021, adaptado de Raven, 2003 – Biologia Vegetal, 5ª Ed., p. 10.

Os animais

Por Rosana Souza-Lima

A Terra tem cerca de 4,5 bilhões de anos, e os primeiros fósseis possuem cerca de 3,5 bilhões de anos. Imagina-se que aos poucos foi se acirrando a competição pelas moléculas orgânicas disponíveis para nutrição, e há cerca de 3,4 bilhões de anos surgiram pequenos organismos unicelulares que conseguiam usar substâncias inorgânicas simples para produzir a energia necessária às suas atividades. Esse foi o caminho que permitiu que prosseguisse a vida na Terra – a quebra da molécula de H2O, que era abundante na terra, liberando O2 que passou a ser utilizado pela maioria dos organismos autotróficos.

Em 1990, o microbiologista Carl Woese (1928-2012) propôs o agrupamento dos seres vivos em três domínios: dois constituídos por procariontes (Bacteria e Archaea), e um terceiro reunindo todos os seres eucariontes, Eukarya (Figura 1). Uma das mais corroboradas propostas de divisão do Domínio Eukarya é a que une no grupo Opisthokonta os dois mais conhecidos grupos de Eukarya heterótrofos: os fungos e os animais. Opisthokonta é definido pelo fato da maioria das células de seus membros apresentar cristas mitocondriais planas, e as células flageladas normalmente terem um único flagelo originando-se na extremidade posterior da célula (Figura 2).

Diagrama da árvore da vida numa perspectiva filogenética molecular.
Figura 1: Principais grupos de seres vivos numa perspectiva filogenética molecular (adaptado de Nealson, 1997).
Figura 2: Divisão do Domínio Eukarya em grupos; os retângulos vermelhos mostram a posição dos dois grupos de heterótrofos mais conhecidos, os animais e os fungos. Fonte: Adaptado de Alastair Simpson, Dalhousie University, 2020; CC-BY-SA-4.0 (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Eukaryote_Phylogeny.png).

Há evidências de que a vida procarionte (que são as células com material genético solto no citoplasma) tenha surgido nos oceanos primitivos e há cerca de 2 bilhões de anos, uma dessas células tornou-se endossimbionte (= passou a viver dentro) de outra: isso teria originado as mitocôndrias, resultando numa célula eucariótica que tinha a possibilidade de lidar com a oferta de oxigênio, que estava começando a aparecer na atmosfera da Terra. A célula eucariótica é a que tem o material genético guardado dentro de uma bolsinha membranosa, o núcleo. Milhares de anos se passaram desde a origem desses primeiros organismos eucariontes até eles de fato se diversificarem, mas talvez essa lacuna tenha sido criada por esses organismos terem corpo pequeno e sem esqueletos duros, dificultando que deixassem registro fóssil. Aparentemente ainda não havia oxigênio suficiente para permitir a evolução de formas maiores de microrganismos e, na verdade, nem todo organismo se torna um fóssil, ao morrer: são necessárias condições especiais para que isso aconteça (falamos sobre isso em “O que são fósseis, como se formam e sua importância”).

Atualmente estima-se que os primeiros animais teriam menos de 900 Ma (Ma = milhões de anos). Vários desses registros são icnofósseis, vestígios deixados nas rochas pelas atividades realizadas por esses organismos. Embora haja vestígios até mesmo de formas embrionárias, ainda há muita discussão sobre a idade dos primeiros bilatérios, que parece girar em torno de 565 milhões de anos, na era Neoproterozóica (Pré-Cambriano). Aparentemente o grupo-irmão dos animais são “protistas” coanoflagelados, organismos geralmente coloniais, formados por uma única célula e com um único flagelo, circundado por um colar transparente contendo filamentos de actina. A proposta é de que uma linhagem colonial tenha diferenciado células corporais e reprodutivas, levando ao surgimento de organismos multicelulares cujas células são mantidas juntas por estruturas adesivas: os animais! Outras linhagens de “protistas” foram as ancestrais de Fungos e Plantas, grandes grupos de organismos pluricelulares.

Intervalo para uma reflexão: por que estou escrevendo “protista” entre aspas? Esse grupo de seres eucariontes unicelulares eram considerados um Reino. Entretanto, hoje se sabe que os “protistas” não formam uma linhagem única, e podemos ver isso na Figura 2: se excluirmos plantas, animais e fungos, todos os outros nomes se referem a organismos que anteriormente eram incluídos nesse “Reino Protista”. Assim, continuamos usando esse termo por conveniência, mas não se refere a um agrupamento monofilético de organismos. Monofilético são os grupos que têm uma história evolutiva comum pois descendem do mesmo ancestral.

Os Metazoa são um grupo monofilético definido por muitas novidades evolutivas (= sinapomorfias; leia o texto “Como identificar relações de parentesco entre os seres vivos?”). Além da multicelularidade e da presença de junções epidérmicas aderentes, todos apresentam um estágio embrionário com blástula e todos, exceto os Porifera (popularmente chamados de “esponjas”), apresentam o estágio de gastrulação (Figura 3), que gera duas camadas embrionárias: epiderme externa e endoderme interna; a presença de diferentes camadas embrionárias leva à produção de estruturas distintas, aumentando a diversidade de formas dentro do grupo. Os animais possuem, ainda, processos únicos na produção de ovócitos (gametas femininos) e de espermatozóides (gametas masculinos), células com metade da carga genética do indivíduo adulto (= haplóides, símbolo “n”) que, quando se unem durante o processo de fecundação, resultam em um organismo com dois conjuntos de material genético, um vindo do ovócito da mãe e outro do espermatozóide do pai (= diplóide, símbolo “2n”). Apresentam, ainda, estruturas relacionadas à sustentação e movimentação corporal, como as proteínas contráteis actina-miosina e a proteína colágeno.

Figura 3: Representação das fases embrionárias de blástula e gástrula em Metazoa (adaptado de Lopes, 2008).

Ao final da era Proterozoica, há cerca de 750 milhões de anos, começou a quebra do supercontinente Rodínia. Nessa era ainda havia pouco oxigênio na atmosfera e nas regiões mais profundas do oceano. Há indícios da ocorrência de três períodos de glaciações, cada um durando cerca de 10 milhões de anos, separados por períodos de aquecimento forte e rápido, provavelmente produzido por fortes erupções vulcânicas que provocavam o acúmulo de CO2, resultando em um efeito estufa; nesse contexto surgiram os metazoários. Posteriormente, quando o nível de oxigênio na atmosfera aumentou e se estabilizou, teria permitido a rápida diversificação de organismos grandes e mais ativos.

No cladograma resumido dos Metazoa (Figura 4) estão os nomes dos maiores filos animais, para que você tenha um panorama geral do Reino. Para cada ponto da história evolutiva desses organismos será citada, nesse texto, ao menos uma novidade evolutiva que a partir dali levou à grande diversificação das linhagens descendentes.

Resumo das relações filogenéticas entre os principais grupos de Metazoa.
Figura 4: Resumo das relações filogenéticas entre os principais grupos de Metazoa; algumas características que definem cada um dos grupos são citadas no texto. Fonte: Rosana Souza Lima, 2021 (CC BY-NC 4.0).

Embora seja difícil perceber o porquê dos exemplares incluídos no Filo Porifera serem considerados animais, eles compartilham conosco as características que definem Metazoa. Entretanto, não formam tecidos verdadeiros. Alimentam-se de partículas em suspensão capturadas pelos coanócitos, células flageladas muito semelhantes aos organismos coanoflagelados. A água entra em seus corpos por vários pequenos poros e sai por uma abertura maior, o ósculo; a parede corporal pode ser bastante elaborada, aumentando a área superficial em contato com a água, a quantidade de células corporais e potencializando a filtração e captura de partículas (Figura 5). A maior parte das espécies atuais é de água salgada, mas algumas espécies ocorrem em água doce. Muitos membros desse grupo apresentam esqueletos internos formados por espículas calcárias e silicosas, o que garante melhores condições de fossilização.

Figura 5: A) Diferentes tipos de complexidade morfológica em Porifera; as setas azuis mostram o fluxo da água na cavidade corporal, que não funciona como uma cavidade digestiva. Fonte: adaptado por Philcha, https://commons.wikimedia.org/, (CC BY-SA 3.0), de Ruppert & Barnes, 2004. B) Colônia com muitos organismos de esponjas da espécie Hymeniacidon sanguinea (Família Hymeniacidonidae): os poros maiores são os ósculos, por onde sai a água que circula por seus corpos; Cabo Frio, RJ. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2013 (Copyright).

O filo Cnidaria se caracteriza por ser diblástico: como seu embrião sofre gastrulação, desenvolverá dois tecidos embrionários (Figura 6): a ectoderme externa e a endoderme interna. Muito diverso, inclui formas muito conhecidas, como medusas, anêmonas-do-mar e corais; esses últimos, que formam extensas colônias interligadas por seus esqueletos de carbonato de cálcio formam os mais importantes registros fósseis desse filo. Nesse grupo, radialmente simétricos, ocorre um sistema digestório incompleto, onde a ingestão de alimento e a eliminação de resíduos não digeridos (= fezes) ocorrem pela boca.

O peixe Amphiprion sp. vive em simbiose entre os tentáculos da anêmona-do-mar, que é um Cnidário.
Figura 6: O peixe Amphiprion sp. vive em simbiose entre os tentáculos da anêmona-do-mar, que é um Cnidário; Aquário de Quebec, QC, Canadá. Fonte: Ricardo Souza-Lima, 2013 (Copyright).

Os grupos seguintes são bilateralmente simétricos e triploblásticos: durante a neurulação, fase que sucede à gastrulação, a camada embrionária interna, endoderme, diferenciará um terceiro folheto germinativo, a mesoderme. Esse folheto embrionário é responsável pela origem de muitos tecidos e estruturas, como musculatura, tecidos conjuntivos, estruturas esqueléticas e sistemas circulatório, excretor e reprodutor. Em alguns grupos o peritônio, tecido mesodérmico, margeia uma cavidade corporal, o celoma; o sanduíche formado pela bolsa de peritônio com celoma interno, preenchido por líquido celomático, fica em volta dos órgãos corporais. Notamos, portanto, como o surgimento da mesoderme é fundamental para a origem da crescente complexidade corporal que observamos nos animais.

O filo Platyhelminthes inclui vermes achatados dorsoventralmente e acelomados, pois neles a mesoderme não forma cavidade celomática. Há espécies de vida livre em água doce ou salgada, mas a maioria delas é de parasitas; tubo digestório incompleto e até mesmo ausente em algumas formas. Seus corpos moles não formam registros fósseis importantes.

Os moluscos são caracterizados por possuírem corpo com cabeça, pé e massa visceral, essa última coberta por um tecido chamado “manto” que geralmente secreta o esqueleto em forma de concha, composto por carbonato de cálcio (Figura 7). Alguns grupos não têm concha, porém, ou têm concha reduzida e interna. Entretanto, graças à essa estrutura, formam um rico e informativo registro fóssil. Os Anelídeos, grupo proximamente relacionado, têm corpo fortemente segmentado, muitas formas com o corpo repetindo várias vezes segmentos muito parecidos entre si, geralmente com cerdas, e sistema nervoso ganglionar bem desenvolvido. Animais com essas características são conhecidos aproximadamente a partir do Cambriano.

Figura 7: Exemplar da Família Nautilidae que abriga as últimas formas viventes de moluscos cefalópodes. Nautilus pompilus Linné, 1758, Indo-Pacífico – Museo Bernardino Rivadavia, Buenos Aires. Fonte: Rosana Souza Lima, 2007 (Copyright).

Nas rochas do período Ediacarano (final da era Proterozoica) nos deparamos com uma grande surpresa: há registros de invertebrados marinhos que incluem formas muito parecidas à de filos que ainda ocorrem hoje em dia, como os Porifera (esponjas), Cnidaria (corais e águas-vivas), Mollusca (caramujos e polvos). Alguns dos mais de 100 gêneros de fósseis ediacaranos descritos tanto de águas rasas quanto profundas, porém, são diferentes de tudo o que conhecemos. Aparentemente a maioria deles possuía corpos moles, sem partes duras de grandes tamanhos. Já se encontra registros de duas formas corporais: os que apresentavam simetria radial, como os Cnidaria e equinodermas atuais, e os com simetria corporal bilateral. Muitos desses organismos entraram em extinção na transição do para o Cambriano, no último evento de glaciação do Proterozoico.

Figura 8: Simulação de representantes da fauna de Burgess Shale, oeste do Canadá (Cambriano Médio; Royal Tirrel Museum, Drumheller, AB, Canadá). Fonte: Rosana Souza-Lima, 2017 (Copyright).

O éon Fanerozoico, que inclui as eras Paleozoica, Mesozoica e Cenozoica – essa última sendo a nossa era atual – é palco de um período de ocorrência de muitas formas de vida. Começou, na era Paleozoica (541 a 252 Ma), com a “explosão do Cambriano” (Figura 8), período entre 541 e 485 Ma no qual os animais continuaram a enfrentar oscilações climáticas extremas e mudanças químicas da atmosfera e dos oceanos. O aumento no teor de cálcio dos mares influenciou o surgimento de muitos organismos com esqueletos bem-mineralizados inclusive representantes da maior parte dos filos animais que conhecemos atualmente. Talvez a “popularização” desses esqueletos seja um indício de que nesse período aumentaram as atividades predatórias nos mares. Enquanto a fauna ediacarana inclui maior número de espécies que se alimentavam de detritos e material em suspensão, no começo do Cambriano há registros de carnívoros e herbívoros, como artrópodes predadores gigantes, e no final do Cambriano já ocorrem registros de peixes agnatos, talvez hematófagos (comedores de sangue) ou saprófagos (comedores de animais mortos) como os que existem atualmente. Assim, ampliaram-se muito os nichos ecológicos nos ambientes marinhos, e muitas dessas linhagens cambrianas viveram por muitos milhões de anos.

Figura 9: Modelos didáticos para exibir os grupos agnatos viventes atualmente: A) Exemplar de Petromyzontiformes (lampréia); B) Petromyzontiformes: larva amocetes à esquerda e corte longitudinal de cabeça de lampréia adulta à direita; C) Myxini (feiticeiras): corpo inteiro, comportamento de nó e detalhe da cabeça. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2021 (Copyright).

Trabalhos publicados recentemente sugerem que alguns desses filos tenham, na verdade, se originado no período Ediacarano. Algumas das discussões avaliam a taxa de oxigênio livre nesses períodos, que certamente está ligada à evolução da vida animal. Provavelmente foram necessários alguns milhões de anos para acúmulo do oxigênio livre produzido pela fotossíntese das cianobactérias. É possível, também, que os oceanos proterozoicos tenham sido mais oxigenados nas regiões mais superficiais e mais anóxicos nas regiões mais profundas. O oxigênio permitiu a evolução de formas maiores e de formas mais ágeis, que podiam sair em busca de suas presas, gastando muita energia nesse processo.

Nematoda e Artropoda formam, com outros filos menores, o clado Ecdysozoa, pois trocam a cutícula quitinosa ao menos uma vez durante seu ciclo de vida. Nematoda geralmente têm uma troca entre cada um dos 4 estágios de crescimento. Apresentam um par de órgãos sensoriais cefálicos, os anfídios, que consistem em um poro externo ligado por um ducto a uma bolsa anfidial ligada ao anel nervoso cerebral; provavelmente são quimiorreceptores. Os Artrópodos são, de longe, o maior grupo de animais com espécies descritas, e com seu exoesqueleto quitinoso estão presentes em registros fósseis desde o pré-Cambriano. Ainda assim, estima-se que o que conhecemos é cerca de 10 a 20 % de todas as formas que existem.

Figura 10: Exemplo da diversidade de insetos (Arthropoda), o maior grupo de seres vivos atuais; Insetário, Jardim Botânico, Montréal, QC, Canadá. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2013 ( Copyright ).

O modo de formação da boca, ânus e celoma é um dos critérios que agrupa os animais dos filos Hemichordata, Echinodermata e Chordata como deuterostomados. Há uma proposta de que os dois primeiros filos sejam mais próximos entre si por compartilharem o mesmo destino do blastóporo, que geralmente forma ânus (embora alguns grupos tenham sofrido regressão e apresentem tubo digestório incompleto) e por exibirem uma larva com estrutura bem parecida. Ambos os grupos só têm representantes marinhos. Os Hemichordata são vermes de corpo mole dividido em probóscide ou escudo, colarinho e tronco. Apresentam uma estomocorda que já foi considerada homóloga da notocorda, embora a opinião atual é de que não seja; daí o seu nome. Já os Equinodermas, com simetria bilateral nas larvas e simetria radial desenvolvida secundariamente no adulto, têm um complexo sistema de canais que forma um sistema ambulacral que, além de auxiliar na locomoção, serve também para respiração, excreção e captura de alimento, a depender do organismo. Equinodermos também apresentam um rico registro fóssil, já que a maioria das formas apresenta um endoesqueleto de carbonato de cálcio.

Figura 11: Exemplos de Equinodermos: A) Ouriço-do-mar, Lytechinus variegatus; B) Pepino-do-mar, Holothuria grisea; Cabo Frio, RJ. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2018 ( Copyright ).

Os Chordata são um grupo mais conhecido por incluírem os Vertebrata. Atualmente passa por muitas modificações de nomenclatura resultantes da metodologia cladista. O grupo “Pisces”, por exemplo, não é monofilético e, na verdade, engloba quatro grupos principais: Myxini (feiticeiras), Petromyzontiformes (lampréias), Chondrchthyes (‘peixes’ secundariamente cartilaginosos) e Osteichthyes, os peixes ósseos. Esse último inclui dois grupos principais: os Actinopterygii, que inclui cerca de 30 mil espécies de ‘peixes’ nos quais a nadadeira só apresenta raios, sem musculatura, e Sarcopterygii, com 8 espécies de ‘peixes’ ainda existentes e os Tetrapoda. Os Tetrapoda incluem os Anfíbios e os Reptilomorpha. Nesse último grupo estão incluídos os répteis, aves e mamíferos. Prestou atenção no que está escrito aqui? Nós, mamíferos, somos um tipo de Osteichthyes, portanto…

Figura 12: Osteichthyes: A) Lepidosiren paradoxa (única espécie de Sarcopterygii existente atualmente na América do Sul; loja de aquário); B) Geophagus brasiliensis (Actinopterygii; rio Grande, Jaconé, Saquarema, RJ). Fonte: Rosana Souza-Lima, 2018 ( Copyright ).

Os primeiros peixes teleósteos (grupo de Actinopterygii onde são incluídas a maioria das espécies que ocorrem no planeta atualmente) e os famosos euriptéridos (conhecidos como “escorpiões-marinhos”, embora não sejam escorpiões), proliferaram no período Ordoviciano. Os primeiros artrópodos terrestres surgiram no Siluriano e no Devoniano o número de formas de vida terrestres aumentou muito, graças à diminuição do CO2 atmosférico (veja no texto sobre “Os vegetais”). Cerca de 80% das espécies conhecidas pelos cientistas atualmente são artrópodes, e os insetos são cerca de 80% desse total.

No Permiano há cerca de 270 Ma, houve a maior extinção em massa do Planeta, na qual cerca de 90% das espécies marinhas e 70% das terrestres foram eliminados, incluindo formas comuns até então, como alguns tipos de corais e os trilobitas.

No Triássico (já na era Mesozoica, há cerca de 200 Ma) houve a formação da Pangeia. O clima do planeta era quente, e haviam grandes desertos. Após a extinção de Permiano a diversidade de animais ampliou-se rapidamente, e surgiram os dinossauros e os primeiros mamíferos terrestres. Ao menos na parte mais rasa dos mares sabemos que aumentou a diversidade de corais e peixes. Houve, porém, um novo evento de extinção em massa, que resultou no desaparecimento de aproximadamente metade das espécies da época.

Figura 13: As montanhas Atlas, no Marrocos, são parte da formação Província Magmática do Atlântico Central, que ocorreu em parte da região mediana da Pangea no Mesozoico, há cerca de 200 Ma. Entre as montanhas, o rio Ziz (Oued Ziz; Errachidia, Marrocos). Fonte: Ricardo Souza-Lima, 2010 ( Copyright ).

O período Jurássico continuou com clima quente. Nesse período a Pangeia dividiu-se em Laurásia ao norte e Gonduana ao sul, gerando um canal marinho, o Mar de Tétis, que parece ter sido ambiente para muitas espécies da fauna marinha tropical.

Os oceanos, inclusive o Atlântico, sofreram muitas transgressões: as águas, mais altas, avançavam sobre as terras, mais baixas, formando muitas áreas aquáticas rasas. Aos poucos o clima foi esfriando. Ao final do período Cretáceo, nova extinção em massa, com perda de cerca de 50% das espécies, inclusive muitas formas de dinossauros todos os amonóides. O Cenozoico, que começou há 66 Ma, continuou com clima mais frio por cerca de 10 milhões de anos. As correntes marinhas que se formaram quando a Antártida se separou da América do Sul resultou no seu clima gelado atual. Há 56 Ma os gases do efeito estufa aqueceram a atmosfera e os oceanos do planeta e várias linhagens de animais voltaram a aumentar, como os recifes de corais atuais. Agora, discute-se sobre o rápido declínio e extinção de muitas formas de vida causada pelo intenso crescimento das populações humanas e suas atividades econômicas em diversos pontos da Terra.

Como identificar as relações de parentesco entre os seres vivos?

Por Rosana Souza-Lima

Você já deve se perguntou por que alguns biólogos se preocupam tanto em catalogar as diversas espécies de seres vivos do planeta? Por que será que é importante saber em que grupo uma determinada espécie se encaixa? A área de trabalho que lida com essas questões é chamada de “Sistemática”, justamente pela preocupação em sistematizar (=organizar) nossos conhecimentos sobre os seres vivos. A sistemática, porém, vai muito além de apenas conhecer ou listar as espécies conhecidas. Vamos conversar sobre isso!

Imagine que queiramos identificar, por exemplo, os nichos alimentares que podem ser encontrados em determinada área, ou quais as relações ecológicas entre dois ou mais seres vivos de um dado lugar ou até mesmo comparar as proteínas que ocorrem em um determinado grupo de espécies. Bom: a primeira coisa que precisamos descobrir é de que espécies estamos falando, não é?

Nossas tentativas de reconhecer espécies e os modos de agrupá-las são muito, muito antigas: começaram cerca de 350 anos antes da Era Cristã, com os trabalhos do filósofo Aristóteles. A partir daí alternativas se sucederam, sendo mais ou menos aceitas pela comunidade científica. Em 1950 o entomólogo alemão Willi Hennig apresentou uma proposta metodológica que ganhou espaço ao longo dos anos: a metodologia cladista. Como funciona esse método?

Para que possamos avaliar os caracteres do ponto de vista evolutivo devemos, de início, formular uma primeira hipótese: serão esses caracteres homólogos ou homoplásicos? Homólogos são caracteres que possuem a mesma origem evolutiva, o que indica, portanto, parentesco entre os grupos comparados. As homoplasias são características muito parecidas entre si, mas que não têm uma mesma origem evolutiva. Ou seja: os caracteres ficaram parecidos por processos que os modelaram em resposta a alguma pressão ambiental. Vamos examinar um exemplo: à primeira vista, as nadadeiras de peixes e baleias são muito parecidas entre si. Entretanto, uma simples radiografia mostra que são formadas por estruturas muito diferentes: a semelhança é apenas externa, causada pelo fato de ser mais fácil se locomover no ambiente aquático possuindo uma estrutura que empurre a água. Além da aparente semelhança entre as estruturas comparadas, a posição anatômica em que essas estruturas se situam pode dar uma pista sobre sua provável homologia. E se for possível estudar o desenvolvimento embrionário dos organismos em questão, melhor ainda, pois os organismos mais relacionados entre si são muito parecidos durante o início do seu desenvolvimento. Quanto mais evidências analisamos, mais confirmamos a nossa hipótese sobre “aquele” ser um caráter que nos ajudará a identificar o parentesco entre os grupos estudados.

Uma vez definidas as homologias, chegamos ao ponto principal: selecionar quais delas são importantes na indicação do relacionamento entre as linhagens. Essa avaliação é o “pulo do gato” nessa metodologia! Como fazemos isso? Uma das possibilidades é comparar o grupo que estamos estudando (que agora chamaremos de grupo interno) com algum outro grupo que seja parecido com ele (grupo externo). O fato de serem parecidos facilitará na hora de compararmos as estruturas de ambos, porque nem sempre é fácil entendermos se se trata da mesma coisa. A regra é simples: se a característica examinada se apresentar da mesma forma em ambos os grupos, ela é considerada uma plesiomorfia: significa que é um caráter que já estava presente no ancestral de todos, e não representa uma novidade evolutiva para os grupos que estão sendo avaliados. Já se um dado caráter for diferente em um, alguns ou em todos os membros do grupo interno quando comparados aos membros do grupo externo, o caráter é considerado uma novidade evolutiva ou, em “biologuês”, uma apomorfia. Essa avaliação é a “polarização de caracteres”: a partir dessas deduções construiremos um quadro (=matriz) onde as plesiomorfias serão codificadas com zero, e as apomorfias codificadas com um; zero e um são os estados do caráter. Apenas as apomorfias, portanto, indicam parentesco entre os membros do grupo interno, que é o nosso grupo de interesse; o grupo externo só é utilizado para nos permitir formular hipóteses sobre a natureza dos caracteres que estamos observando. Por exemplo, vamos construir uma matriz a partir da comparação dos peixinhos exibidos na Figura 1: um desses taxa representa o grupo externo, e os 3 taxa seguintes representam espécies distintas (“Táxon” é uma palavra de origem latina que significa qualquer unidade taxonômica: pode ser usada para designar espécie, família, ordem, tribo… qualquer categoria! Seu plural é “taxa”).

Figura 1: Espécies de peixes que serão usadas para explicar ideia principal da metodologia cladista. Copyright: Rosana Souza-Lima, 2021.

O primeiro passo será levantarmos características a serem examinadas por comparação com o grupo externo. Ex.:

Tabela 1: Dados selecionados a partir de exame de espécies de peixes em estudo. Copyright: Rosana Souza-Lima, 2021.

A partir das polarizações que estamos propondo, construímos nossa matriz. Nessa matriz nem colocamos uma coluna para o grupo externo, porque como regra da metodologia já sabemos que todos os caracteres que ele possui são polarizados como plesiomorfias. Perceba que não adianta, portanto, computarmos as características que permanecem iguais às que ocorrem no grupo externo: essas características, como formato do corpo e formato do olho, são plesiomorfias que ocorrem em todos os 4 grupos e, portanto, não indicam parentesco. Um caráter plesiomórfico que une vários grupos é chamado de simplesiomorfia (sin = ‘junto’), e não tem valor informativo porque interpreta-se que já ocorria no ancestral dos grupos externo e interno. As novidades evolutivas, ou apomorfias, quando unem taxa são chamadas de sinapomorfias. Quantas sinapomorfias estão listadas na tabela abaixo?

Tabela 2: Matriz baseada nos caracteres listados na Tabela 2, baseados nos ‘animais’ exibidos na Figura 1. Copyright: Rosana Souza-Lima, 2021.

De posse da nossa matriz, vamos construir uma representação gráfica do processo evolutivo dessa linhagem que é chamado de cladograma. O cladograma começa mostrando uma linha do tempo, onde aos poucos vamos incluindo os fatos da história que estamos contando. Podemos começar pelos fatos mais abrangentes, que reúnem um maior grupo de taxa, para os menos abrangentes, que atinge apenas um táxon. Por exemplo: os caracteres 1, 2 e 3 ocorrem em todas as três espécies. Então, a história que contam começa assim:

Cladograma da história evolutiva do grupo estudado.
Figura 2: Primeiro passo na elaboração de um cladograma que exiba a história evolutiva do grupo estudado. Copyright: Rosana Souza-Lima, 2021.

O que significa a história contada na Figura 2? Que em determinado momento, ou em 3 momentos distintos, as alterações genéticas que se acumulavam numa dada linhagem resultaram no surgimento de 3 caracteres diferentes dos que já existiam. Nesse momento não conseguimos distinguir os indivíduos A, B e C entre si, porque todos os 3 tinham as 3 características novas. Essas características novas, portanto, são sinapomorfias que unem A, B e C. Sendo unidos por sinapomorfias, podemos dizer que o grupo ABC é monofilético: possui apenas uma (=mono) origem (=filético); o ancestral das linhagens ABC é o mesmo. Mas o que aconteceu depois? Como foi a diferenciação seguinte?

Figura 3: Passos seguintes na elaboração de um cladograma: aos poucos, acrescentamos novos caracteres, delineando os agrupamentos por eles definidos. Copyright: Rosana Souza-Lima, 2021.

Os caracteres 4, 5 e 9 nos fornecem a próxima pista: B e C formam um segundo grupo monofilético (Figura 3). O compartilhamento desses três caracteres mostra que B e C são mais próximos entre si do que do A. Podemos perceber, ainda, a plasticidade dos caracteres: enquanto os caracteres 1, 2 e 3 eram uma sinapomorfia que reúne A, B e C, eles podem ser encarados como uma simplesiomorfia para B e C. Ou seja: eles não servem mais para agrupar B e C, porque o surgimento de 1, 2 e 3 ficou para trás, para um outro momento dessa história. Foi necessário o surgimento de novas apomorfias, 4, 5 e 9, para que percebêssemos que B e C formam um grupo monofilético.

Figura 4: Cladograma incluindo todos os caracteres mencionados na matriz produzida pela análise dos exemplares (Figura 3). Os caracteres em cores diferentes da azul são autapomorfias de cada táxon terminal A, B ou C. Para mais explicações, veja o texto. Copyright: Rosana Souza-Lima, 2021.

Para que servem os caracteres escritos em cores diferentes do azul na Figura 4? Esses caracteres que são exclusivos de um táxon, e que não unem dois grupos, são chamados de autapomorfias. Embora não sejam úteis, nesse momento das nossas análises, para esclarecer as relações de parentesco entre ABC, servem para diagnosticar cada um desses taxa. No campo, por exemplo, se encontrarmos um peixinho desse tipo com manchas amarelas em formato de nuvens, já saberemos que se trata de um exemplar da espécie A. A presença dos caracteres autapomórficos nos mostra, também, que a todo momento estão surgindo modificações nas características de uma linhagem. Essas modificações são causadas por influência ambiental, ao longo do tempo, na carga genética dos organismos, provocando alterações que aos poucos se acumulam. Essa diferenciação genética ao longo do tempo se chama anagênese, e cria as condições gênicas para que aos poucos as espécies se diferenciem. Já falamos sobre anagênese e cladogênese na publicação sobre “Fósseis e a evolução dos seres vivos”. Dê mais uma olhada lá para relembrar!

Nem sempre os caracteres apomórficos apresentam-se em apenas um estado: você pode registrar todas as variações que vê em uma determinada estrutura. Já está implícito na metodologia que a ordem em que alguém os numera não necessariamente é a ordem em que apareceram na natureza. Pode inclusive ficar comprovado que apareceram em completa desordem. Veja um exemplo na Figura 5! No nosso grupo hipotético de peixes também temos um caráter multiestado, o caráter número 4 (Tabela 2). Veja que nesse caso não precisamos de nenhuma hipótese de ordenação dos caracteres para que ele nos fornecesse uma informação de parentesco entre os grupos B e C (Figura 4).

Figura 5: Exemplo hipotético da sequencia de transformações pelas quais pode passar um determinado caráter. A) Usando os números com os quais os caracteres foram listados; B) Avaliando as diversas formas assumidas pela estrutura analisada que pode ser, por exemplo, um determinado segmento ósseo. Copyright: Rosana Souza-Lima, 2021.

De acordo com a composição dos grupos internos e externos podemos polarizar o caráter de um modo diferente. Assim, como praticamente tudo na Ciência, as classificações estão sujeitas a novos ajustes e refinamentos à medida que novos taxa e novos caracteres forem acrescentados. E a partir de estudos das relações de parentesco entre organismos também temos uma ideia que corroboram ou não propostas geológicas e geográficas de como a Terra foi se modificando ao longo desses milhões de anos em que a vida se transforma. É uma linha de trabalho fascinante!

A classificação dos fósseis e dos seres vivos modernos

Por Rosana Souza-Lima

Para nos comunicarmos é necessário nomear tudo o que nos rodeia. Senão, como você poderia, por exemplo, bater um papo, pedir um favor, expressar um sentimento? Assim, podemos supor que os seres vivos que nos rodeiam também venham sendo nomeados ao longo dos milhares de anos de existência da linhagem humana. Os cientistas, porém, precisam de um pouco mais de exatidão: afinal, para trocar dados e comentários sobre seres tão distintos, vivendo em pontos muito diferentes do planeta, precisam ter a certeza de que estão falando sobre a mesma coisa. Precisam, portanto, que os seres tenham um nome científico que seja o mesmo em qualquer ponto da Terra, que não mude regionalmente, e que seja conhecido por todos que trabalham com aquele assunto.

Os primeiros registros consistentes de agrupamentos de seres vivos e de propostas de uma nomenclatura científica são atribuídos a Aristóteles (Figura 1), que viveu na Grécia quase 400 anos antes de Cristo. Foi um pesquisador incrível, ainda mais se considerarmos os recursos de que dispunha. Considerado o “Pai da Zoologia” e “Pai da Ictiologia” (= estudo dos peixes), descreveu mais de 100 espécies de peixes do Mar Egeu (procure em um mapa onde fica!), agrupou os animais em vertebrados e invertebrados e reconheceu grupos como seláquios (tubarões e raias), aves e mamíferos. Quando Aristóteles propôs esses grupos ele estava em busca de algo que é meta dos pesquisadores até hoje: reconhecer as relações de parentesco entre os vários grupos de seres vivos. Apesar da ideia de “parentesco” ter sido usada, sobretudo, após a publicação do livro “A Origem das Espécies” por Charles Darwin em 1859, já vemos desde Aristóteles a preocupação em organizar os seres vivos de acordo com suas semelhanças e especificidades. A ideia por trás desses agrupamentos é simples: seria improvável que organismos diferentes apresentassem algumas características tão semelhantes entre si, se essas semelhanças fossem causadas por mero acaso: é muito mais provável que eles pertençam a uma mesma linhagem. Portanto, não basta batizar os seres vivos com nomes científicos e agrupá-los: nomes de grupos e os próprios agrupamentos refletem a origem comum desses seres. A Sistemática é a área da Biologia que avalia os caracteres de um ponto de vista comparativo para entender as relações de parentesco entre os organismos. O resultado dos estudos dos sistematas reflete na Taxonomia, que é o conjunto de acordos e regras específicas que determinam como deve ser a nomenclatura. A Sistemática, então, produz resultados que podem acabar modificando os nomes científicos que deveriam ser estáveis, para facilitar o trabalho dos cientistas. Entretanto, essas mudanças são necessárias, pois acontecem à medida que aprendemos mais sobre quem são os seres vivos que habitam a Terra. E essa é uma tarefa gigantesca, pois estima-se que não conhecemos ainda nem metade dessa biodiversidade. Muitas mudanças na nomenclatura ainda virão!

Figura 1: Esquerda: Busto de Aristóteles, naturalista grego, na Galeria Uffizi em Florença, Itália; Direita: Estátua de Carolus Linnaeus na fachada do Royal Palace em Estocolmo, Suécia. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2019; 2012.

Muitas regras de nomenclatura usadas até hoje foram propostas por Lineu (Figura 1), naturalista sueco que a partir de 1735 começou a publicar sua proposta de sistema de classificação dos seres vivos, aplicando suas ideias para toda a diversidade conhecida até aquela época. Foi um trabalho de nomenclatura gigantesco, refletindo todas as ideias de sistemática daquele período! Entre os grupamentos que Lineu propôs está a inclusão dos humanos junto aos demais primatas… e pensar que 100 anos depois Darwin seria tão ridicularizado por uma ideia que nem era nova!

Você já deve ter estudado que Lineu propôs que os organismos fossem classificados em um sistema hierárquico que incluísse grupos cada vez menores de organismos cada vez mais parecidos entre si. E apesar de numerosos problemas metodológicos, é o que temos usado até agora; nesses 300 anos de uso, novas propostas são continuamente discutidas, e o sistema de nomenclatura reajustado. Existem comitês internacionais que estudam problemas de nomenclatura para cada um dos reinos de seres vivos.

Lineu propôs 7 categorias taxonômicas. “Reino” é a mais abrangente, podendo conter vários “Filos”; “Filo”, por sua vez, pode conter várias “Classes”… e assim por diante, até que chegamos a “Gênero”, que pode conter várias “Espécies” (Figura 2).

Figura 2: Eis um exemplo de como funcionam as sete categorias taxonômicas propostas por Lineu. “Reino”, aqui representado em verde, é a categoria mais abrangente. Nesse exemplo o Reino contém apenas um “Filo”, representado em azul, que contém apenas uma “Classe”, representada em roxo. Essa Classe, por sua vez, contém duas Ordens, representadas em rosa, que contêm uma Família em cada uma, representadas em vermelho. A Família da esquerda contém três Gêneros (representados em laranja): um deles com 10 espécies, outro com 7 e o terceiro com 17 espécies (representadas por triângulos amarelos). A Família representada à direita também contém três “Gêneros”: um com quatro, outro com duas e o último com três espécies. Fonte: Rosana Souza-Lima, 2020.

Conseguiu compreender como esse sistema de categorias exibe o parentesco entre os seres vivos? As espécies que pertencem ao mesmo gênero formam um grupo de organismos mais inclusivo, com fortes relações de parentesco. Essas relações vão ficando mais distantes até que em membros do mesmo Reino as relações existem, mas indicam que as linhagens se separaram há muito mais tempo. Para entender isso melhor, dê uma olhada na Figura 4. Essa “árvore” indica que todos os seres vivos têm a mesma origem. Uma das evidências mais forte desse relacionamento foi a descoberta do CÓDIGO GENÉTICO, que ajudou a decifrar como as moléculas de Ácido Ribonucleico (=RNA) decifram a sequência de bases nitrogenadas do DNA para construir um organismo. Os cientistas descobriram que cada três bases nitrogenadas em sequência, o CÓDON, determina a formação de um dos 20 aminoácidos que constituem as proteínas do corpo de qualquer ser vivo. Veja o significado de cada trinca na Figura 3. O Código Genético é dito “degenerado”, pois cada um dos 20 aminoácidos existentes pode ser codificado por mais de um códon: vejam na tabela (Figura 3) que seis códons codificam o aminoácido Leucina. E nenhum códon é ambíguo, codificando mais de um aminoácido: codificam APENAS UM! É, ainda, dito “UNIVERSAL”, pois cada códon é traduzido em um aminoácido idêntico em quase todos os organismos. Vejam na tabela: o códon UUA codifica o aminoácido Leucina tanto em um ser humano como em uma bactéria. Isso é incrível, e demonstra que há de fato uma origem única para todos os seres vivos: seria impossível que o significado dos códons fosse o mesmo, por acaso, para os mais de 1 milhão de seres vivos existentes.

Figura 3: Código genético: o significado dos códons, combinações de trincas de bases nitrogenadas que codificam cada um dos vinte aminoácidos existentes. Fonte: Flick, 2020; tradução livre para português; CC01.

Ligando essas diversas informações podemos concluir que um dos trabalhos fundamentais dos cientistas é nomear todos os seres vivos que são objetos de seus estudos e classificá-los, segundo suas características morfológicas, fisiológicas, comportamentais, cromossômicas ou moleculares, de modo a refletir o seu parentesco. Ao longo do tempo os esforços sempre se concentram em procurar uma metodologia satisfatória para comparar essas características a ponto de sabermos se elas indicam que dois organismos apresentam um ancestral comum ou se é apenas fruto de radiação adaptativa. Em 1950 um entomologista, Willi Hennig, publicou uma nova proposta, a metodologia CLADISTA: comparar o nosso grupo de estudo (= grupo interno) com um grupo de organismos próximo (= grupo externo) e avaliar que características do grupo interno são novidades: essas novidades, compartilhadas, vão revelando conexões entre as várias linhagens. Essa metodologia, que é a predominante nos trabalhos científicos atuais, trouxe muitas alterações taxonômicas: bem-vindas, pois significam refinamento da nossa compreensão sobre os organismos.

Em 1977 o microbiologista Carl Woese propôs que adotássemos uma nova categoria taxonômica acima de Reinos, os Domínios. Foram propostos três Domínios: Archaea, Bacteria e Eukarya (Figura 4). Os dois primeiros domínios incluem organismos procariontes, cujas células não apresentam núcleo celular verdadeiro e o material genético fica disperso no citoplasma. Unicelulares, podem apresentar nutrição autotrófica ou heterotrófica. O Domínio Archaea, mais próximo dos Eukarya, inclui organismos extremófilos que conseguem sobreviver em ambientes inóspitos, como os ricos em metano ou enxofre ou com temperatura muito alta. No Domínio Bacteria estão as bactérias que vivem no solo e na água, as causadoras de doenças e as cianobactérias, essas com muitos representantes fósseis. Assim, não mais existe o reino Monera, já que os organismos procariontes podem pertencer ao Domínio Archaea ou Bacteria.

Figura 4: Árvore filogenética dos seres vivos baseada nos trabalhos de Carl Woese (1990) usando dados de RNA. Fonte: Fundação Paleontológica Phoenix, 2020.

O Domínio Eukarya reúne os organismos eucariontes, que possuem material genético delimitado por uma carioteca (= membrana nuclear). Incluem os três Reinos atuais: Reino Plantae (= vegetais), Reino Fungi (= fungos) e Reino Metazoa (= animais). Os vegetais, uni ou pluricelulares, têm nutrição autotrófica (= fabricam açúcares a partir da fotossíntese), enquanto os fungos e os animais, pluricelulares, são heterotrófico (= precisam se alimentar de outros seres vivos): os fungos se alimentam por absorção e os animais por ingestão do alimento. O reino Protista ou Protoctista, como o Monera, também não é mais considerado válido: esses variados organismos, ainda pouquíssimo conhecidos, possuem parentesco com diferentes grupos, não formando um grupo com uma origem única que possam ser reunidos em um mesmo Reino.

Vamos verificar se compreendeu o texto?