Cachoeira do Saboeiro

Por Wagner Souza-Lima

Cachoeira do Saboeiro

CACHOEIRA DO SABOEIRO

A Cachoeira do Saboeiro está localizada às margens do rio Vaza-Barris, aproximadamente entre as cidades de Lagarto e São Domingos, no Estado de Sergipe. Embora esteja mais próxima desta última, seu acesso mais fácil encontra-se através de Lagarto, pois evita-se tanto caminhar por uma trilha longa e pouco aberta, como ter que atravessar o rio Vaza-Barris. Por Lagarto, encontra-se a cerca de 100 km de Aracaju.

Constitui um magnífico exemplo ainda ativo da formação de travertinos associado a fontes superficiais de água doce enriquecidas em carbonato de cálcio (CaCO3), podendo por essa razão serem também denominados de “tufas”. É talvez o único ambiente do tipo existente em Sergipe, ativo até o Recente. A cachoeira forma-se praticamente no ponto de encontro do pequeno riacho do Saboeiro com o rio Vaza-Barris, estando a poucos metros deste último. O riacho do Saboeiro é um curso d’água de pequeno porte e extensão, cuja nascente principal encontra-se cerca de 500 m a NW da cachoeira, no sítio denominado “piscina do Saboeiro”.

Do ponto de vista geológico, a nascente do riacho do Saboeiro ocorre em metacarbonatos aparentemente fraturados da Formação Olhos d’Água, já bem próximos ao contato com os filitos e metagrauvacas da Formação Frei Paulo, que ocorrem ao lado da cachoeira. Estas unidades pertencem, respectivamente, aos grupos Vaza-Barris e Simão Dias, de idade neo- a mesoproterozóica. O sítio encontra-se na margem sudoeste do “Domo de Itabaiana”, ao sul da Serra da Miaba, uma feição estrutural do tipo braquianticlinal, originada provavelmente ainda no Neo-Criogeniano (cerca de 850 Ma), antes da deformação regional de toda a faixa dobrada, que ocorreu no final do Proterozóico (no ciclo denominado “Brasiliano”, entre 850 e 500 Ma).

Mapa geológico do Domo de Itabaiana (adaptado do “Mapa geológico do Estado de Sergipe”, CPRM/CODISE, 1997). A “Cachoeira do Saboeiro” localiza-se ao sul da Serra da Miaba, às margens do rio Vaza-Barris.

A formação destes tipos de depósitos ocorre quando águas subterrâneas enriquecidas em dióxido de carbono (CO2) entram em contato com rochas carbonáticas, provocando sua dissolução, pois o dióxido de carbono dissolvido atua como um ácido fraco, transformando o carbonato de cálcio em bicarbonato de cálcio (Ca(HCO3)2):

CaCO3 + H2O + CO2 ⇌ Ca2+ + 2HCO−3

Como este composto é instável, e existe apenas em solução, quando sua concentração aumenta, qualquer perturbação no sistema que cause diminuição da pressão parcial de CO2 (pCO2) fará com que o carbonato de cálcio precipite novamente. E, nesse caso, a própria velocidade da corrente do córrego e o impacto das gotículas super-saturadas nas quedas d’água aumentam as interações entre a solução e o ar, favorecendo a precipitação, formando uma ampla gama de formações carbonáticas.

No sítio da cachoeira do Saboeiro são observados travertinos sob a forma de terraços, cascatas, represas, estalactites, cortinas, mini-represas, formas botrioidais ou massas de aspecto poroso envolvendo fragmentos orgânicos diversos (já decompostos, restando apenas a porosidade móldica), bem como incrustando seixos, fragmentos de rocha e conchas de gastrópodos (muitos dos quais ainda vivem nas pequenas represas).

Os travertinos estão distribuídos em uma área muito mais ampla do que o curso atual da cachoeira, sendo bem visível na escarpa adjacente ao norte, sugerindo que as condições de umidade podem ter sido mais amplas e favoráveis em tempos não muito remotos.

Cachoeira do Saboeiro
Cachoeira do Saboeiro, exibindo múltiplos terraços de travertinos, formando piscinas naturais.

A presença de vegetação ao longo do trajeto do riacho, ao mesmo tempo que favorece a dissolução dos carbonatos pela presença de ácidos orgânicos, também induz sua precipitação com sua decomposição. É assim muito comum a preservação de moldes externos de pequenos fragmentos vegetais como caules, talos e frutos, bem como impressões foliares delicadamente delineadas. A precipitação de carbonato de cálcio induzida por atividade bacteriana tem sido amplamente documentada nestes processos na literatura mais recente, tendo importante papel neste tipo de precipitação ao redor de matéria orgânica em decomposição.

Percorrer o sítio da cachoeira é fácil apenas na sua parte superior, que engloba a nascente e o curto trecho do riacho até o início da queda. Já o acesso à cachoeira não é muito fácil, principalmente devido à sua altura, de cerca de 20 m, que despenca de uma escarpa íngreme e escorregadia. Há um acesso pela direita, não menos íngreme, bem marcado, difícil tanto na descida como na subida, que conta com um cabo de aço improvisado, mas não muito confiável, que serve de suporte. O elevado ângulo de mergulho das camadas da Formação Frei Paulo (cerca de 60°), dificulta o que já é difícil. Porém, com os devidos cuidados, não é impossível subir e descer.

Na parte superior, a vegetação predominante é do tipo savana gramíneo-lenhosa, com muita influência antrópica. Pequenos trechos com resquícios de vegetação nativa resistem ao longo do curso do riacho. Na área da cachoeira e do cânion do Vaza-Barris, florestas-de-galeria residuais são encontradas, ricas em pteridófitas, briófitas e licopodiófitas nas áreas úmidas.

Vale do Vaza-Barris
O vale do Vaza-Barris – visão ao sul da cachoeira
Vale do Vaza-Barris
O vale do Vaza-Barris e a Serra da Miaba (vista ao norte da cachoeira)

Como chegar

Chegar até o local não é difícil, mesmo em carros não tracionados. A partir de Aracaju, por Lagarto, o acesso se dá pela BR-101 e BR-349 até esta última cidade. Seguindo em direção a Simão Dias, cerca de dois quilômetros adiante, toma-se o acesso à direita para o povoado Barro Vermelho e, depois, para o Saboeiro. Todo o trajeto é facilmente roteável.

Coordenadas do sítio: 10°47’30″S; 37°36’41″O

Orville Adelbert Derby

Por Wagner Souza-Lima

Orville Adelbert Derby, mais conhecido na geologia brasileira como “Derby”, nasceu em 23 de Julho de 1851 no pequeno povoado de Kellogsville, na zona rural da cidade de Niles, no Estado de Nova York, Estados Unidos.

Ingressou aos 17 anos, em 1869, na Cornell University, em Ithaca, onde logo chamou a atenção de Charles Frederic Hartt, professor naquela instituição. Hartt, que encantara-se pela Geologia do Brasil desde que havia participado da “Expedição Thayer” (1855-1856), organizada por Louis Agassiz, percebeu em Derby um grande potencial, e como preparava-se para sua primeira expedição independente ao Brasil, convidou-o para participar da “Expedição Morgan”. Esse fato influenciaria definitivamente a carreira e vida de Derby.

Partiram para o Brasil em 23 de Junho de 1870, desembarcando em Belém do Pará. Daí exploraram o vale do rio Amazonas, quando foram descobertas a rica fauna carbonífera do rio Tapajós e os fósseis devonianos de Monte Alegre e da serra do Ererê. Além de Hartt e Derby, participaram da expedição o Prof. Albert Nelson Prentiss (1836–1896), botânico, e mais 12 estudantes da Cornell University.

Derby, aos 19 anos, com Charles Frederick Hartt, durante a expedição Morgan (acervo de Derby, no Museu de Ciências da Terra, Rio de Janeiro).

O sucesso da primeira expedição Morgan propiciou uma segunda expedição, também financiada principalmente pelo empresário e político Edwin Barber Morgan (1806–1881). Na segunda Expedição Morgan, realizada entre Julho e Dezembro de 1871, Hartt e Derby, este com 20 anos, retornaram ao vale do Amazonas , e examinaram também diversos pontos entre a costa do Pará e de Pernambuco, estudando pela primeira vez os fósseis cretáceos de Pernambuco.

Regressando para os EUA em Janeiro de 1872, Derby graduou-se em Geologia em 1873 e obteve o título de “Master of Science” em 1874, com sua tese “On the Carboniferous Brachiopoda of Itaituba, Rio Tapajos, Prov. of Pará, Brazil“, orientada por Hartt. Em 1874, com a partida de Hartt para o Brasil, o substituiu como instrutor de Geologia na Cornell University.

Devido ao prestígio adquirido em suas pesquisas no Brasil, Hartt foi convidado ao Brasil em 1874 a fim de apresentar sua proposta de criação de um serviço geológico para o Império. Acompanhou-o seu assistente e aluno John Casper Branner (1850-1922). Em meados de 1875 conseguiu, finalmente, a aprovação de sua proposta, criando-se a “Commissão Geologica do Imperio do Brasil”, assumindo a sua direção. Assim, chamou para participar da comissão, quatro antigos alunos dentre os quais Derby e Richard Rathbun (1852-1918). Integrariam também a comissão, Elias Fausto Pacheco Jordão (o primeiro brasileiro a estudar em Cornell), Francisco José de Freitas, John Casper Branner, Luther Wagoner, Franck G. Carpenter, Herbert Huntington Smith (1851–1919), e o fotógrafo Marc Ferrez (1843–1923).

Comissão Geológica do Império (1875) – ao centro, sentados, Charles Frederick Hartt, Derby e Marc Ferrez (acervo de Derby, no Museu de Ciências da Terra, Rio de Janeiro).

Em Dezembro de 1875, Derby chegou ao Brasil, onde viveria até o fim da sua vida. Seus primeiros estudos nesta nova fase foram dedicados ao Cretáceo da Bahia e Sergipe, e também à geologia do rio São Francisco. Posteriormente dedicou-se a estudos no Pará, Paraná e Amazonas.

Além do amplo conhecimento adquirido acerca da geologia do Brasil, pelos trabalhos da comissão, um riquíssimo acervo geológico, paleontológico, zoológico e arqueológico foi coletado. Por motivos mais políticos do que econômicos, contudo, o destino da comissão foi selado pelo ministro da Agricultura (órgão à qual estava vinculada), o conselheiro João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu. Apesar de todo o êxito dos trabalhos realizados pela comissão e da vasta coleção obtida, ela foi suspensa temporariamente em 1877 e extinta em 1878, com a morte de Hartt. A morte de Hartt causou um grande impacto em Derby, que lhe fez companhia até os seus últimos minutos de vida.

Em 1876, com a reorganização do Museu Nacional, em 1876, Hartt havia se tornado diretor do departamento de Geologia, mas ficou pouco tempo no cargo devido aos afazeres que tinha na comissão. Em 1877, com a suspensão temporária da comissão, Derby, com 26 anos, começou a atuar como voluntário no museu. Com a extinção da comissão no ano seguinte, não mediu esforços em resgatar o enorme acervo e colocá-lo em salvaguarda no Museu Nacional, que à época funcionava no Campo da Aclamação (hoje Campo de Santana). A coleção de fósseis obtidos das duas expedições Morgan e da extinta comissão era tão expressiva que compunha 70% da coleção paleontológica daquele museu até o fatídico incêndio de 2018. Em 1879 foi efetivado como diretor da seção de Geologia, cargo em que permaneceu até 1886, quando iniciou sua colaboração na organização dos trabalhos dos levantamentos topográficos e geológicos de São Paulo.

No Museu Nacional publicou, à exceção de sua tese de mestrado, os primeiros trabalhos sobre a geologia do Brasil, no recém-criado “Archivos do Museu Nacional”. Sua produção científica foi imensa! Entre os anos de 1879 e 1890 publicou 42 trabalhos sobre a geologia, mineralogia e paleontologia do Brasil. Derby foi um dos principais pesquisadores envolvidos para o translado do enorme meteorito Bendegó desde o sertão da Bahia até o Museu Nacional, em 1888. Muitos dos aparelhos utilizados por Derby nas suas pesquisas (p. ex., três microscópios e um espectrômetro), comprados com seus próprios recursos, constavam no acervo do Museu Nacional até o incêndio de 2018.

Derby colaborou formalmente com o Museu Nacional até 1890, quando foi exonerado ao entrar em vigor um regulamento que impedia o acúmulo de cargos, já que ele chefiava a Comissão Geográfica e Geológica da Província de São Paulo.

Em todo o período que viveu no Brasil, entre 1875 e 1915, Derby apenas afastou-se do Brasil em três ocasiões, duas delas por motivos dos seus trabalhos no Museu Nacional, e uma pela Comissão de São Paulo.

Derby residiu em São Paulo a partir de 1886, e permaneceu no comando da Comissão Geográfica e Geológica da Província de São Paulo até o início de 1905. Neste ano desligou-se da comissão devido a uma série de desentendimentos que já vinham acontecendo desde 1900, através de críticas à sua metodologia criteriosa, redução de verbas e redução de salários. Assim como acontecera com Hartt, em relação à Comissão do Império, Derby sucumbia por motivos políticos.

Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo – De pé, atrás, estão Antônio Avé Lallemant, Luiz Felipe Gonzaga de Campos, Eugen Hussak, Axel Frick, Antônio Lacerda e Alberto Löfgren. Sentados, Francisco de Paula Oliveira, Orville Adelbert Derby, Theodoro Fernandes Sampaio e João Frederico Washington Aguiar. Fotografia publicada no Boletim do Instituto Geográfico e Geológico.

Tão logo saiu da Comissão de São Paulo, Derby foi convidado por Miguel Calmon du Pin e Almeida (1879-1935), Secretário da Agricultura do Estado da Bahia, para reorganizar, com plenos poderes, o “Serviço de Terras e Minas do Estado da Bahia”. Derby permaneceu no cargo por dois anos, quando foi novamente convidado por Miguel Calmon, agora Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas do governo de Affonso Penna, para instalar o “Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil”. Este órgão foi criado em 10 de Janeiro de 1907, tendo Derby como seu primeiro diretor.

Mesmo envolvido ao longo de sua vida profissional com atividades administrativas e, muitas vezes, burocráticas, Derby teve uma imensa produção científica, totalizando 175 publicações versando sobre a geologia em geral, mineralogia, geologia econômica, geografia física, cartografia, paleontologia, meteorologia e outros temas, dos quais 125 foram voltados à Geologia do Brasil. Considerado pelos seus colaboradores como uma pessoa extremamente polida, educada e respeitosa, nunca se deixou levar a ações grosseiras, mesmo tendo sido alvo de várias críticas por adversários invejosos, tanto no meio político como científico.

Foi entre 1912 e 1915 que a paleontóloga norte-americana Carlotta Joaquina Maury (1874-1938) colaborou, por convite de Derby, com o Serviço Geológico do Brasil, deixando importantes contribuições à Paleontologia do Brasil, em especial à de Sergipe. Além dela, vários respeitados pesquisadores estrangeiros estiveram envolvidos na pesquisa científica do país, todos a convite de Derby, como John Casper Branner, Roderic Crandall, Franz Eugen Hussak, Horace Elbert Williams e Milton Underdown.

Derby dedicou a maior parte de sua vida ao Brasil, onde viveu por 40 dos seus 64 anos de vida. Em Abril de 1915, solicitou finalmente sua naturalização brasileira, oficializada em Julho do mesmo ano.

Desde 1910 o “Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil”, onde atuara por mais de oito anos, passava por momentos difíceis, com cortes de verbas e, como conseqüência, das suas atividades. Não se sabe exatamente quais os verdadeiros motivos que levaram Derby, em 27 de Novembro de 1915, a cometer suicídio, com um tiro de revólver à cabeça. Morava há nove anos no “Hotel dos Estrangeiros”, na Praça José de Alencar, no Catete, Rio de Janeiro. Nada deixou de pista, apenas uma carta iniciada para João Pandiá Calógeras, ex-ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, onde apenas se lia “My dear Dr. Calogeras…“. Sabe-se apenas que Calógeras, quando ministro, no início de 1915, reduzira de forma ainda mais drástica o orçamento do Serviço Geológico, mudando também as diretrizes estabelecidas por Derby.

Derby sempre teve uma vida solitária, sem família no Brasil, longe dos seus laços originais americanos. Nunca se casou. Morou sempre em quartos de hotel. Teve fiéis amigos, que foram seus colaboradores no Museu Nacional ou pelos serviços geológicos por onde passou. De certo modo, sua vida foi dedicada exclusivamente a destrinchar a geologia do Brasil. Sua dedicação foi fundamental ao avanço do conhecimento geológico do Brasil, tornando-o um dos mais importantes geólogos que o país já teve.

Para saber mais:

  • Tosatto, P. 1998. Imagens do Brasil no tempo de Derby. DNPM, Rio de Janeiro, 128 pp.
  • Tosatto, P. 2001. Orville A. Derby – “O pai da Geologia do Brasil”. CPRM, DNPM, Rio de Janeiro, 126 pp.
  • Mahl, M. L. 2012. Orville Adelbert Derby: Notas para o Estudo de sua Atuação Científico-Intelectual em São Paulo (1886-1905). Revista de História, São Paulo, 167: 295-320.
  • A Noite, 1915. Suicida-se o eminente scientista Orville Derby. 1413, p. 1.

Poções da Ribeira

Por Wagner Souza-Lima

POÇÕES DA RIBEIRA

Os Poções da Ribeira constituem uma feição geológico-geomorfológica localizada ao sul da cidade de Itabaiana, no Estado de Sergipe, a pouco mais de 50 km de Aracaju. Constitui um magnífico sítio natural exibindo uma drenagem superimposta formada pela passagem do rio das Traíras através do prolongamento sul da serra de Itabaiana. O leito do rio define um cânion mais suavizado na sua porção norte e profundamente ressaltado mais ao sul, onde, na sua porção mais exuberante, que constitui a saída do cânion, alcança cerca de 100 m de altura e 25 m de largura, na sua parte mais inferior.

Do ponto de vista geológico, o sítio está implantado em rochas metassedimentares do Grupo Miaba, de idade neo-proterozóica (eocriogeniana?; entre 800-850 Ma), envolvendo as formações Itabaiana (quartzitos) e Ribeirópolis (filitos e metargilitos). O sítio encontra-se na margem sul do “Domo de Itabaiana”, uma feição estrutural do tipo braquianticlinal, originada provavelmente ainda no Neo-Criogeniano, antes da deformação regional de toda a faixa dobrada, que ocorreu no final do Proterozóico (no ciclo denominado “Brasiliano”), cujo núcleo é composto principalmente por gnaisses e migmatitos, em relevo negativo, circundado pelas cristas metassedimentares soerguidas nas diversas fases de deformação subsequentes.

Mapa geológico do Domo de Itabaiana (adaptado do “Mapa geológico do Estado de Sergipe”, CPRM/CODISE, 1997). Os “Poções da Ribeira” localizam-se na Serra Comprida, que é o prolongamento sul da Serra de Itabaiana.

O rio das Traíras, responsável pelo delineamento do sítio, faz parte da bacia hidrográfica do Vaza-Barris. Nasce nas proximidades da cidade de Macambira, em Sergipe, nas vertentes orientais da Serra da Miaba, atravessando o setor ocidental do domo, composto por gnaisses e migmatitos do embasamento neo-arqueano/paleoproterozóico, cujo relevo é relativamente aplainado. A pouco mais de 3 km antes do sítio em questão (ao norte), o rio das Traíras encontra-se represado pela barragem da Ribeira, uma estrutura de terra com 26 m de altura e 500 m de comprimento. Isto faz com que o rio, no trecho dos Poções, entre a barragem e o rio Vaza-Barris, tenha normalmente pouca água, que é mais abundante apenas no período das chuvas ou por eventual transbordamento da barragem. Após o sítio, o rio das Traíras encontra-se com o rio Vaza-Barris em sua margem esquerda, depois de percorrer pouco mais de 3 km.

Vista dos Poções da Ribeira no trecho do contato entre as formações Itabaiana e Ribeirópolis.

O setor mais visitado do sítio é o da desembocadura do cânion. Nele, o rio das Traíras cortou os quartzitos da Formação Itabaiana, os quais, nesta área, apresentam acentuado mergulho (em torno de 45°). O rio ziguezagueia pelas rochas formando poços de profundidades variadas (informações não verificadas indicariam que o poço mais externo, ainda nos quartzitos, apresenta profundidade superior a 12 m) até formar um pequeno lago, de fundo arenoso, instalado sobre rochas da Formação Ribeirópolis.

Percorrer o cânion não é muito fácil, principalmente devido à sua restrita entrada, ao elevado ângulo de mergulho das camadas no trecho inicial e ao grande poço nela existente. Porém, com os devidos cuidados, é uma caminhada prazerosa.

A vegetação predominante é do tipo savana gramíneo-lenhosa, com florestas-de-galeria localizadas em alguns trechos internos ao cânion e, em maior extensão, após a desembocadura do mesmo.

Como chegar

Chegar até o local não é difícil, mesmo em carros não tracionados. O acesso se dá pela BR-235 até o povoado de Rio das Pedras. Dois quilômetros adiante, toma-se o acesso à esquerda (SE-102) para o povoado da Ribeira. Todo o trajeto é facilmente roteável.

Coordenadas do sítio: 10°49’50″S; 37°27’00″O

Charles Frederick Hartt

Por Wagner Souza-Lima

Nos dias atuais, temos as mais sofisticadas ferramentas de pesquisa e facilidades de deslocamento que nos permite percorrer enormes extensões territoriais em pouquíssimo tempo, com facilidades de hospedagem e alimentação. Contudo, nos esquecemos que há pouco mais de cem anos, a maior parte do conhecimento científico relacionado às ciências naturais, em particular o geológico, e que hoje adotamos como base às nossas pesquisas, deve-se a pesquisadores determinados e idealistas, muitos dos quais arriscaram a própria vida na busca ao conhecimento. Na segunda metade do séc. 19, parte fundamental do conhecimento da geologia do Brasil deve-se a um desses intrépidos desbravadores, Charles Frederick Hartt, que percorreu uma enorme extensão territorial do Brasil em um curto intervalo – não continuo – entre os anos de 1865 e 1878. Hartt viajou por parte significativa do litoral brasileiro, aprofundou-se no interior da Bahia até a cachoeira de Paulo Afonso, adentrou numa extensão impensável no vale do rio Amazonas, dentre outras regiões, numa época em que além das poucas embarcações de linha, só se podia contar, como alternativa, com canoas, cavalos e os próprios pés.

Charles Frederick Hartt, mais conhecido pelo seu sobrenome científico, Hartt, nasceu em 23 de Agosto de 1840 em Fredericton, uma pequena cidade de New Brunswick, atualmente uma das províncias do Canadá. Era o filho mais velho de Jarvis William Hartt e Prudence Brown Hartt. Como àquela época as províncias do Atlântico não faziam ainda parte do Canadá, Hartt, na verdade, era um cidadão britânico, e apenas em 1870 se tornaria um cidadão dos EUA.

O aprendizado inicial de Hartt foi feito pelo seu pai,  já reconhecido educador na região. A paixão de Hartt pelas ciências naturais já era notada quando ele tinha apenas 10 anos. Quando adolescente, Hartt já demonstrava forte aptidão ao aprendizado de idiomas e grande talento como desenhista. Após os estudos iniciais com seu pai, Hartt estudou na Horton Academy, em Wolfville, Nova Scotia, onde seu pai ensinava à época, e depois no Acadia College, nesta mesma cidade, onde graduou-se em 1860. Neste colégio, sua paixão pelas ciências naturais acabou levando-o a auxiliar o Prof. Isaac Chipman na preparação e organização de sua coleção. Com Chipman, Hartt adquiriu grande conhecimento da mineralogia. Sua aptidão como desenhista acabou levando-o a lecionar desenho no mesmo colégio, ainda muito jovem.

No período em que viveu em Wolfville, aprendeu os primeiros rudimentos de Português com um sapateiro da cidade, o que, embora não tivesse ainda a mínima idéia àquela época, seria muito útil para suas pesquisas futuras. Neste período iniciou também seus primeiros estudos voltados à Geologia, explorando algumas regiões da Nova Scotia próximas ao Annapolis Valley e Minas Basin, cruzando a província a pé e organizando uma grande coleção de exemplares, hoje guardados nas coleções do Natural History Society Museum, em St. John, no Peter Redpath Museum, da McGill University, em Montreal, e no Agassiz Museum em Cambridge, Massachussets (atual Museum of Comparative Zoology da Harvard University.

Em 1860, Jarvis Hartt mudou-se com a família para St. John, a fim de estabelecer uma escola de educação superior para jovens mulheres, que contou com o auxílio de Hartt na sua administração. Até a chegada de Hartt à região, muito pouco se sabia acerca da geologia das vizinhanças de St. John, havendo dúvidas mesmo sobre a idade das rochas que lá afloravam. Entre 1861 e 1863, Hartt organizou uma rica coleção de fósseis, principalmente vegetais, que posteriormente seriam reconhecidos como carboníferos, além dos mais antigos registros de insetos até então encontrados. A paixão de Hartt pela Geologia levou-o a fundar o “Steinhammer Club”, uma associação voltada ao estudo da Geologia, que posteriormente viria se tornar a Natural History Society of New Brunswick.

Seus estudos chamaram a atenção de Louis Agassiz (1807–1873), recém-estabelecido nos Estados Unidos, em Cambridge, que o convidou a ser seu aluno nesta cidade. Assim, em 1861, Hartt mudou-se para Cambridge, a fim de aprofundar seus estudos em Geologia. Mesmo estudando com Agassiz, manteve os vínculos científicos com New Brunswick e Nova Scotia, aprofundando o conhecimento acerca do então proposto Carbonífero e sua ocorrência nesta região, trabalhando com os professores L. W. Bailey e G. F. Matthew no serviço geológico de New Brunswick. Contudo, progressivamente Hartt desenvolvia uma propensão a problemas asmáticos, o que dificultava seu trabalho de campo nestas regiões frias e úmidas, o que talvez tenha sido uma das razões para que ele se interessasse em participar, aos 24 anos de idade, da Expedição Thayer ao Brasil, organizada pelo Professor Agassiz.

A Expedição Thayer partiu de Nova York em 2 de Abril de 1865, e retornou em 2 de Julho de 1866 – o principal objetivo desta expedição seria o estudo dos peixes de água doce do Brasil. Porém havia um motivo que impulsionava Agassiz de forma ainda mais intensa: efetuar estudos geológicos focados, essencialmente, no exame dos depósitos superficiais do Rio de Janeiro e do vale do rio Amazonas e sua conexão com as glaciações do planeta. Num momento em que as idéias de Darwin estavam se expandindo, Agassiz, um anti-evolucionista convicto, considerava a natureza como algo estático: Deus teria criado os animais e as plantas em pontos específicos da Terra, e assim elas permaneceram do mesmo modo como teriam sido criados – mas como explicar a existência de organismos distintos em estratos sedimentares diferentes, depositados uns sobre os outros? A partir dos seus estudos acerca das glaciações, iniciados à época em que morava em Neuchatel, Suiça (com o indissociável papel de Karl Schimper nestes estudos – vide Evans, 1887), Agassiz propôs que antigas geleiras teriam coberto todo o hemisfério norte numa prolongada idade do gelo. Para ele, cada glaciação e um novo aquecimento subsequente marcaria o fechamento de um  ciclo  que  resultaria no  desaparecimento  de  um grande número de organismos. Assim, a nova época que sucederia este evento seria caracterizada pela criação de novas espécies. A viagem ao hemisfério sul seria uma excelente oportunidade para determinar se as glaciações vistas no hemisfério norte teriam ocorrido no hemisfério sul e, então, comprovar sua teoria contra as idéias evolucionistas de Darwin.

Participaram da expedição Louis Agassiz e sua esposa, Elizabeth Cary Agassiz, o artista James Burkhardt, John G. Anthony, malacologista, Frederick C. Hartt, como geólogo-naturalista-antropólogo, o geólogo Orestes St. John, o ornitólogo John A. Allen, e George Sceva como preparador. Vieram também Newton Dexter, William James, Edward Copeland, Thomas Ward, Walter Hunnewell, Stephen Van R. Thayer (filho de Nathaniel Thayer, financiador da expedição), Thomas G. Cary (cunhado de Agassiz), e o Dr. e Sra. Cotting (residentes no Rio de Janeiro).

Hartt permaneceu pelo Rio por algum tempo, onde realizou estudos geológicos nos cortes da estrada de ferro na região, concentrando-se, posteriormente, entre o Rio e a Bahia, onde estudou a geologia da costa, com ênfase aos recifes de corais e arenosos (beach rocks). Com o fim da expedição e retornando aos Estados Unidos, Hartt trabalhou como professor em várias instituições em Nova York e arredores, como o Cooper Institute, Pelham Priory, Adelphi Academy, dentre outras.

Com o fim da Expedição Thayer, Hartt deu-se conta de que havia ainda no Brasil muito a explorar em muitas áreas do seu interesse. Assim, ajudado por alguns amigos de Nova York, resolveu retornar ao Brasil, de férias, em 1867, passando três meses trabalhando na região litorânea entre a Bahia e Alagoas, coletando os primeiros fósseis cretáceos desta região – os fósseis do Cretáceo de Sergipe foram descritos pelo Prof. Alpheus Hyatt (1838–1902). Efetuou também os primeiros estudos científicos do arquipélago de Abrolhos.

Ilha de Santa Bárbara, Abrolhos, em ilustração de Hartt (1870)
Ilha de Santa Bárbara no arquipélago dos Abrolhos – ilustração de Hartt publicada no seu livro “Geology and Physical Geography of Brazil” em 1870.

Em 1868, ao retornar da sua segunda viagem ao Brasil, trabalhou como professor de História Natural no Vassar College, permanecendo por pouco tempo, pois assumiu, a convite, a cadeira de Geologia da Cornell University, com a qual manteve vínculo até a sua morte.

Casou-se me 1869 com Lucy Linde (1846–1912), nascida em Buffalo, N.Y., com quem teve dois filhos – Rollin Linde Hartt (1869–1946) e Mary Bronson Hartt (1873–1946). Neste período, organizou os dados levantados durante a Expedição Thayer e as observações da sua segunda viagem, publicando, em 1870, um robusto volume intitulado “Geology and Physical Geography of Brazil”, sua mais importante e abrangente obra.

Em 23 de Junho de 1870 partiu para sua terceira viagem ao Brasil, agora sob a forma de sua primeira expedição, financiada por várias pessoas, destacando-se o empresário e político Edwin Barber Morgan (1806–1881), em cuja homenagem a expedição foi denominada. Dela participaram, além de Hartt, o Prof. Albert Nelson Prentiss (1836–1896), botânico, e 13 estudantes da Cornell University, dentre eles Orville Adalbert Derby (1851–1915), Theodore Bryant Comstock (1849–1915), Herbert Huntington Smith (1851–1919) e William Stebbins Barnard (1849–1888) – seu propósito de ter tantos estudantes era despertar neles a sensibilidade para a pesquisa inédita, com treinamento prático. Hartt decidiu explorar o vale do rio Amazonas, desembarcando em Belém do Pará – nesta expedição ele descobriu, dentre outras coisas, a rica fauna carbonífera do rio Tapajós, e os fósseis devonianos de Monte Alegre e da serra do Ererê, efetuando também estudos arqueológicos na ilha de Marajó.

Entre Julho e Dezembro de 1871 realizou a segunda Expedição Morgan, retornando ao vale do Amazonas com Orville Derby, examinando diversos pontos entre a costa do Pará e de Pernambuco, e estudando pela primeira vez os fósseis cretáceos de Pernambuco. Retornou para os EUA em Janeiro de 1872, onde permaneceu por dois anos e meio em Ithaca, lecionando e efetuando estudos sobre o material obtido no Brasil, auxiliado por dois de seus alunos, Orville Derby e Richard Rathbun (1852–1918). Nos EUA, Hartt frequentemente realizava palestras, relatando suas pesquisas acerca do Brasil em diversas áreas, não apenas como divulgação, mas também como uma forma de conseguir patrocinadores e recursos para seus estudos.

Contudo, o interesse de Hartt pela geologia do Brasil continuava cada vez mais intenso, de tal modo que ele supunha que desvendar a geologia de um país tão amplo somente seria possível com o apoio do governo. Tendo apresentado suas idéias a diversos amigos brasileiros, em 1874 ele recebeu um convite do ministro da agricultura do Brasil para que apresentasse uma proposta formal sobre a exploração sistemática da geologia do império brasileiro. Assim, retornou ao Brasil em Agosto de 1874, a fim de dar suporte e fortalecer sua proposta. Obtendo o apoio do imperador Pedro II, a “Comissao Geologica do Império do Brazil” foi criada em 1° de Maio de 1875, chefiada por Hartt, tendo como assistentes o engenheiro Elias Fausto Pacheco Jordão, os geólogos Orville Derby e Richard Rathbun e Francisco José de Freitas como auxiliar. Logo em seguida, seu ex-aluno John Casper Branner (1850–1922), que trabalhava no serviço geológico do Arkansas, foi convidado para participar da comissão. Posteriormente, integraram o corpo técnico da comissão os geólogos Luther Wagoner e Frank Carpenter (substitutos de Elias Fausto), o naturalista Herbert Huntington Smith (1851–1919), e, eventualmente, o fotógrafo Marc Ferrez (1843–1923).

Fotografia de Marc Ferrez registrando, pela primeira vez, os clássicos afloramentos do calcário do Morro do Chaves, às margens do rio São Francisco, em Sergipe (1875/1876). Fotografia do acervo do J. Paul Getty Museum, Los Angeles, doada por Joseph R. Lasser e Donald I. Reifler (86.XA.749.2.21).

Criada a comissão, os estudos geológicos começaram quase que imediatamente (10 de Junho de 1875), iniciando a exploração da região costeira entre o Rio e o cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte. Estes estudos continuaram em 1876, com ênfase nos depósitos diamantíferos da Bahia e nos terrenos cretáceos de Sergipe, de onde uma rica coleção de fósseis foi obtida e levada ao museu no Rio. A partir de 1877, os estudos se voltaram à região costeira ao sul do Rio, sendo descobertos depósitos carboníferos em Santa Catarina e devonianos/silurianos no Paraná. A região aurífera de Minas Gerais foi explorada por James E. Mills, ao passo que Derby efetuou extensa pesquisa no Amazonas, comprovando a existência de uma gigantesca bacia paleozoica. Estas pesquisas obtiveram tamanha quantidade de material geológico e arqueológico, que foi necessário conseguir uma nova casa onde pudessem ser guardados.

Com a reorganização do Museu Nacional, em 1876, Hartt tornou-se diretor do departamento de Geologia, cargo em que permaneceu pouco tempo devido aos afazeres da comissão geológica. Com a comissão funcionando relativamente bem, sua esposa Lucy veio para o Rio com seus dois filhos. Porém retornou aos EUA no final de 1877, pois estava grávida de gêmeos e sentia-se muito isolada com as constantes viagens de Hartt.

Em Junho de 1877, alegando motivos econômicos, mas na verdade essencialmente políticos, membros do governo, que não compreendiam a importância das descobertas da comissão, mas questionavam os custos das pesquisas, ordenaram a suspensão temporária da comissão. Nesta época, o imperador não se encontrava no Brasil, pois estava há mais de um ano fazendo um tour pelos Estados Unidos, Europa e Oriente Médio. Retornando ao Brasil, Dom Pedro II, deslumbrado com o que viu em museus da Europa e América do Norte, mostrou-se entusiasmado com os feitos da comissão geológica, e ordenou a continuidade dos trabalhos, a despeito do desinteresse dos seus aliados. Na verdade, Hartt era mais um idealista do que político, e imaginava para a comissão geológica brasileira algo nos moldes dos serviços geológicos americanos, que enfatizavam o mapeamento e a pesquisa básica. Porém, o vínculo da comissão com o Ministério da Agricultura forçava que se atingisse benefícios econômicos a curto prazo, de modo a permitir a exploração de recursos minerais e também seu uso na agricultura.

Hartt, então, vivia em constante ansiedade a respeito do futuro da comissão. Seu imensurável esforço para aumentar o conhecimento geológico do país, custou-lhe um enorme preço. Com grande desgaste físico e mental, e muito debilitado pelas suas exaustivas viagens, Hartt viria a falecer às 3:00 da manhã de 18 de Março 1878, de febre amarela, na casa em que vivia na rua da Princesa (atual Corrêa Dutra), 44, longe de sua família, tendo como companhia seu fiel aluno, Orville Derby. Sua morte, associada a uma completa reorganização do Ministério da Agricultura, a quem a comissão estava vinculada, acabou por selar o fim desta. As coleções obtidas foram colocadas sob a guarda do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

A importância de Hartt para a sociedade brasileira foi tamanha que, em 30 de Março de 1878, sua morte foi capa do periódico “Revista Illustrada”, publicada no Rio de Janeiro, em cujo número encontra-se um dos seus primeiros obituários.

Hartt foi sepultado no setor reservado aos protestantes, no cemitério do Caju (Gazeta de Notícias, 1878). Poucos anos depois, em 1883, sua esposa solicitou o translado dos seus restos mortais para a cidade de Buffalo, Nova York, onde vivia, sendo sepultado no Forest Law Cemetery em 13 de Junho deste ano.

Túmulo de Hartt (C. F. H.) no Forest Law Cemetery em Buffalo, Nova York, onde está sepultado junto à sua esposa e filhos.
Túmulo de Hartt (C. F. H.) no Forest Law Cemetery em Buffalo, Nova York, onde está sepultado junto à sua esposa e filhos.

2020 marca os 180 anos do nascimento de Hartt. Antes dos trabalhos de Hartt, o pouco que se conhecia da Geologia do Brasil resumia-se a alguns poucos registros de fósseis cretáceos na Bahia, os trabalhos do naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801–1880), nas cavernas de Lagoa Santa, em Minas Gerais, e algum conhecimento superficial sobre os depósitos carboníferos do Rio Grande do Sul. O determinismo de Hartt resultou em um conhecimento tão amplo da Geologia do nosso país que nenhum outro geólogo, mesmo com as ferramentas mais modernas e as facilidades logísticas dos tempos atuais conseguiu superar. Seus esforços levaram ao reconhecimento da ampla bacia paleozoica do Amazonas, de onde obteve uma fauna siluro-devoniana e carbonífera inédita, explorou os depósitos cretáceos isolados ocorrentes ao longo da costa brasileira entre o Pará e a Bahia, e as ocorrências do Carbonífero no sul do Brasil. Teceu considerações acerca da estrutura geológica do país, definindo a constituição dos seus escudos cristalinos e suas relações com as bacias sedimentares. Estudou os recifes brasileiros, mostrando sua composição distinta entre coralíneos e arenosos. Explorou ainda diversos sambaquis e outras feições de enterramento de povos indígenas pré-históricos ao longo da costa brasileira. Dedicou-se a muitos estudos etnográficos e antropológicos das tribos indígenas modernas do Amazonas e da Bahia, de tal modo que escreveu um dicionário da língua Tupi abrangendo muitos dos seus dialetos. Seus trabalhos de exploração geológica, biológica e antropológica renderam cerca de 500 mil exemplares distribuídos em centenas de caixas, muitas das quais, à época de sua morte, ainda encontravam-se fechadas. Compreendiam material de todas as localidades geológicas conhecidas do Brasil àquela época, um acervo que abarcava a mais completa coleção da Geologia da América do Sul no mundo. Mais do que isso, o carisma de Hartt despertou em muitos dos seus alunos igual dedicação à Geologia do Brasil. Mesmo após a morte de Hartt, John C. Branner permaneceu no Brasil por quase dez anos, e publicou diversos trabalhos sobre a geologia do Brasil, incluindo o primeiro livro didático de geologia em língua portuguesa. Orville A. Derby aqui viveu até sua morte em 1915, sendo responsável pela implantação, em 1886, de um serviço de pesquisa geológica no Estado de São Paulo nos moldes do que Hartt sonhara para o Brasil, e depois ainda participou da criação do que viria a ser o Serviço Geológico do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1906.

Hartt foi, sem sombra de dúvidas, o pai da Geologia do Brasil.

PS: A propósito, após a expedição Thayer, Agassiz retornou aos EUA convicto de que a bacia amazônica teria sofrido a ação de processos glaciais – fato posteriormente contestado pelo próprio Hartt. E a coleção obtida pelos esforços de Hartt frente à Comissão Geológica, colocada sob a guarda do Museu Nacional do Rio de Janeiro foi, ao menos em parte, consumida pelo fatídico incêndio de 2 de Setembro de 2018.

“It is not difficult to sum up Hartt’s influence upon geological work in Brazil, for with very few exceptions all the work of this character which has been done in that country since 1874 is traceable, either directly or indirectly, to the impetus given it by Hartt . . . as he was not a narrow specialist but a broad-minded naturalist, his students have also done other than purely geological work.”

John Casper Branner (1890)

Para saber mais:

  • Atkinson, F. 1896. Albert Nelson Prentiss. Botanical Gazette, 21 (5): 283-289.
  • Branner, J. C. 1890. Charles Frederick Hartt – supplement: Prof. Hartt in Brazil. Bulletin of the Natural History Society of New Brunswick, Saint John, 9: 21-24.
  • Brice, W. R. & Figueirôa, S. F. de M. 2003. Rocky stars: Charles Frederick Hartt – a pioneer of Brazilian geology. GSA Today, March 2003: 18-19.
  • Comstock, J. H. 1906. Cornell Men in Brazil. Cornell Alumni News, Ithaca, 8 (31): 363-364.
  • Evans, e. P. 1887. The Authorship of the Glacial Theory. The North American Review, 145 (368):  94-97.
  • Gazeta de Notícias, 1878. O Professor Hartt. 76, p. 1.
  • Hartt, C. F. 1870. Geology and Physical Geography of Brazil. Boston, Fields, Osgood & Co, reeditado por Robert E. Krieger Ed., New York, 1975, 620 pp.
  • Matthew, G. F. 1890. Charles Frederick Hartt. Bulletin of the Natural History Society of New Brunswick, Saint John, 9: 1-20.
  • Rathbun, R. 1878. Sketch of Professor C. F. Hartt. The Popular science monthly, 13: 231-235.