Por Wagner Souza-Lima
MARUIM NA ROTA DOS VIAJANTES
Até a primeira metade do séc. 19, a principal entrada portuária de Sergipe situava-se à margem esquerda do Rio Sergipe, no local então denominado de “Porto das Redes”. A capital da província, São Cristóvão, apresentava uma situação geográfica que dificultava a existência de um porto. E Aracaju, a futura capital, só seria fundada em 1855, justamente com a justificativa de ser um melhor sítio para o desenvolvimento de uma cidade portuária.
Desde meados da década de 1830 já havia sido estabelecido em um local às margens do rio Sergipe, ao sul da vila de Santo Amaro das Brotas, um trapiche com a finalidade de efetuar os serviços alfandegários, principalmente voltados à exportação do açúcar produzido na região. No seu entorno desenvolveu-se um pequeno povoado. Posteriormente, em 1846, foi realizado o projeto do “Porto das Redes” (nome de um antigo engenho que existia na região), pelo engenheiro alemão Jean Bloem (1799-1851), cujo traçado não chegou a ser totalmente implantado, devido ao caráter um tanto insalubre do lugar e, posteriormente, pela transferência da capital e criação de um novo porto.
A própria história da cidade de Maruim remonta sua criação na localidade conhecida como “Mombaça”, construída algumas centenas de metros a montante de Porto dos Redes, à margem direita do encontro do Rio Ganhamoroba com o Rio Sergipe, que não prosperou exatamente devido à insalubridade do local.
Assim, os viajantes que chegavam à província, vinham usualmente pelo mar, de vapor, adentrando a “Barra do Cotinguiba” (como era conhecido o trecho hoje atribuído ao Rio Sergipe), e seguiam em barcos menores para Maruim ou Laranjeiras, as principais cidades desta rota fluvial.
Em 1855, com a transferência da capital de São Cristóvão para Aracaju, a alfândega do Porto das Redes já estava em desativação, pois uma nova seria construída em Aracaju, a partir de 1859. Assim, quando em 13 de Maio de 1859, o viajante alemão Robert Avé-Lallemant (1812-1884) passou pelo Porto das Redes a bordo de um pequeno barco, vindo da cidade de Aracaju, seguiu direto para Maruim, principal centro econômico da província na metade do séc. 19.
Avé-Lallemant passou dois dias em Maruim, recepcionado pelo comerciante Ernst Schramm e sua esposa Adolphine , membros de uma comunidade alemã de empresários que habitava o local. Descreveu o pouco que restava da vegetação nativa – “arbustos florestais, sem grandes árvores – pastagens abertas e plantações de cana-de-açúcar compõem a paisagem“. Relatou ainda que Adolphine havia inaugurado um pequeno museu com “cobras, lagartos, gafanhotos, tarântulas e besouros de todos os tipos“. Por curiosidade, um sobrinho de Ernst, Otto Schramm, criaria, em 1877, o Gabinete de Leitura de Maruim, primeira biblioteca da província.
Em 14 de janeiro de 1860 ilustres visitantes chegam a Maruim também subindo o curso do Rio Ganhamoroba: o Imperador D. Pedro II, e a Imperatriz Tereza Cristina, que chegaram em visita à capital da província de Sergipe, Aracaju. Com menos de cinco anos de fundação, a cidade de Aracaju apresentava ainda uma economia incipiente, quando comparada a Laranjeiras e Maruim, no vale do Cotinguiba, de modo que isso influenciou sua vontade em conhecê-las. O vapor no qual estavam apenas pôde chegar até o Porto das Redes, prosseguindo provavelmente com um barco menor, pelo Rio Ganhamoroba. Em Porto das Redes, descreveu: “povoação com algumas casas e com trapiche do Schramm“. Maruim contava com cerca de 2 mil habitantes. Como de costume, visitou alguma escola e teceu seus comentários: “Quase nada sabem de doutrina e o professor creio que nada sabe de doutrina. Letra sofrível assim como a do professor, que parece pelo menos medíocre“. Passou algumas horas na cidade, seguindo para Laranjeiras, onde pernoitou e descreveu ter encontrado um fóssil: “Peixe petrificado nas lajes da calçada, perto da cancela do fundo da casa onde moro“.
Sete anos depois, Maruim foi visitada pelo naturalista norte-americano Charles Frederick Hartt, que provavelmente tomou esta cidade como base para seus estudos na região. Sobre Aracaju, descreveu: “uma cidade pequena e desinteressante, construída sobre uma planície baixa de um terraço aluvial, bordejando um rio na base das areias (dunas)”. Aparentemente seguiu pelo “Rio Cotinguiba” (trecho hoje atribuído ao Sergipe), passando pelas pedreiras de Sapucahy (Sapucari), chegando, por fim, a Maruim. De Maruim preparou uma detalhada ilustração da fisiografia da cidade, onde aparece o Rio Ganhamoroba e o Porto Velho, com a matriz e as colinas baixas ao fundo:
Sobre Maruim Charles Frederick Hartt escreveu: “Em Maroïm fiquei satisfeito ao encontrar as ruas pavimentadas com grandes blocos de calcário grosso e amarelado, e ver nelas as impressões de alguns grandes amonóides e ceratites, alguns dos quais peguei e levei comigo”.
Um bom tempo depois, porém de forma indireta, Maruim foi foco das pesquisas da paleontóloga norte-americana Carlotta Joaquina Maury. Maury descreveu fósseis do Cretáceo de Sergipe, muitos deles provenientes de localidades no entorno de Maruim, tais como o próprio Rio Ganhamoroba, Lastro, Olhos d’Água, Trapiche das Pedras Velho, Banheiro público, Riacho da Aroeira e Imbira. Estes estudos foram publicados na obra intitulada “O Cretáceo de Sergipe”, em 1937.
Recentemente uma equipe da Fundação percorreu o curso navegável do Rio Ganhamoroba, desde a cidade de Maruim até o seu encontro com o Rio Sergipe, pouco acima do “Porto das Redes”. A equipe foi composta por Rosana Souza-Lima (bióloga e fotógrafa de detalhes despercebidos), Ricardo Souza-Lima (fotógrafo, engenheiro de computação e observador da natureza) e por mim, tendo como convidado o acadêmico Hefraim Andrade, do Gabinete de Leitura de Maruim.
O ideal é iniciar a jornada com a maré vazante, retornando com a enchente, pois assim tem-se mais tempo para navegar e observar os diversos lajedos de rochas carbonáticas às margens do rio – certamente muito ricos em fósseis. Por limitações impostas pela maré do dia, iniciamos a descida com a maré já no início da enchente. O leito do rio, dentro da cidade, encontra-se muito degradado pelo esgoto descartado diretamente e pelo lixo mal coletado ou jogado diretamente dentro do seu leito. O espaço é disputado por algumas aves nativas e por urubus que se divertem com desenvoltura com a abundância de lixo. Mas mesmo assim, pode-se abstrair essa degradação e aproveitar o pouco que resta da natureza, com o manguezal viçoso comprimido pelas colinas baixas cobertas por canaviais, podendo-se apreciar muitas aves no trecho que segue até o seu encontro com o Rio Sergipe, em especial garças, uma das quais de especial coloração azul-acinzentada, e biguás. Vez ou outra se vê sacos plásticos dependurados nas árvores do manguezal e lixo às margens do rio…
APESAR DE TUDO, AVES! MUITAS AVES!
Apesar da visível degradação ambiental, uma grande variedade e quantidade de aves pode ser observada.
Do antigo “Porto das Redes” nada sobrou – talvez nem mesmo vestígios arqueológicos. Na década de 1990 implantou-se um grande estaleiro sobre o sítio, que destruiu o pouco que restava. Nem mesmo o estaleiro durou muito – apostou numa demanda inexistente e acabou falindo, deixando como memória a pesada estrutura em concreto armado provavelmente onde antes era a alfândega do “Porto das Redes”. Da Mombaça, se restou algo, provavelmente foi coberta pelos canaviais. E da história que precede a fundação da cidade de Maruim, restou nada mais do que uma capela em ruínas, datada de 1742, em franco processo de tombamento pelo tempo, situada na vertente esquerda do Rio Ganhamoroba, no seu trecho não navegável.
NAVEGANDO PELO RIO GANHAMOROBA
Infelizmente hoje, Maruim é um verbo no passado. “Foi”. De um dos principais centros financeiros da Sergipe do séc. 19, já no final deste mesmo século perdeu a concorrência pelos mercados açucareiros mesmo internos, principalmente por Pernambuco. Por outro lado, sua economia suportada na exploração de mão de obra escrava sucumbiu definitivamente com a abolição da escravatura, sem reestruturar-se. Nem mesmo a ferrovia construída no início do século 20 contemplou a cidade. Os comerciantes europeus criaram uma economia baseada apenas no enriquecimento próprio, mantendo a sociedade nativa pobre e inculta. A paisagem descrita por Avé-Lallemant, se já não era memorável, degradou-se ainda mais. A cidade que chegou a possuir nove representações consulares, que sonhava ser um enclave europeu no interior de Sergipe, não resistiu quase nada ao seu pouco tempo de vida. Parou no tempo e, sofrendo um desorganizado processo de urbanização, perdeu a maior parte do pouco patrimônio que possuía, restando construções em processos de arruinamento e outras já arruinadas. O próprio Rio Ganhamoroba, rota de tantos ilustres e desconhecidos, tornou-se um depósito de lixo e de descarte do esgoto urbano. Felizmente a natureza ainda tem força e tenta manter-se de algum modo no vale para o qual lhe confinaram.
Como chegar
Maruim fica a cerca de 30 km a NE de Aracaju, tendo como acesso principal a BR-101. A navegação pelo rio não é oferecida naturalmente, portanto o melhor é o arranjo prévio com algum barqueiro, que pode ser indicado na própria cidade ou encontrado próximo aos barcos no trecho do rio que banha a cidade. O ideal é conciliar o passeio com uma maré vazante que ocorra cedo, pela manhã, quando é melhor o avistamento de aves. A infraestrutura é simples, portanto é bom se programar, levar bebidas e lanches, e muito protetor solar.
Para saber mais:
- Avé-Lallemant, R. 1860. Reise durch Nord-Brasilien im Jahre 1859 – Erster Theil. Brockhaus, Leipzig, 446 pp.
- Azevedo, D. S. 2011. Navegando pelo Cotinguiba: representações de Maruim no século XIX a partir dos relatos de viajantes. In: Simpósio Nacional de História, 26, São Paulo, Anais.
- Bediaga, B. (Org.). “Diário do Imperador D. Pedro II (1840-1891)”. Petrópolis: Museu Imperial, 1999. https://museuimperial.museus.gov.br/diarios/
- Hartt, C. F. 1870. Geology and Physical Geography of Brazil. Boston, Fields, Osgood & Co, reeditado por Robert E. Krieger Ed., New York, 1975, 620 pp.
- Maury, C. J. 1937. O Cretaceo de Sergipe. Monographia Serviço Geológico e Mineralógico 11: 1-263, 6 tabelas; Album das Estampas, I-XXXV, estampas 1-28. Rio de Janeiro.